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segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

O negócio da morte

Aqui jazem cerca de 200 milhões de euros que os portugueses enterram em cerimónias fúnebres por ano. Há quem pague 20 mil euros por um funeral


NELSON MARQUES

Maria Melo, 75 anos, nunca teve filhos. Na juventude, apaixonou-se por quem não podia (“ele não estava disponível”) e nunca quis mais ninguém. “Naquele tempo”, conta, “não era comum uma mulher solteira ter filhos”. Por isso, quando leu num anúncio na revista do Automóvel Clube de Portugal de que podia pagar já o seu funeral, nem hesitou: era impensável deixar a fatura para a irmã ou os quatro sobrinhos. “Não quis deixar-lhes encargos. Devemos tratar destas coisas enquanto estamos capazes. Foi por isso que também já fiz o meu testamento vital”.

Reformada desde 2000, depois de 36 anos como assistente social de psiquiatria no Hospital Miguel Bombarda, em Lisboa, Maria pagou no final do ano passado 3600 euros em duas prestações por um dos seis planos ‘Funeral em Vida’ da Servilusa, a maior empresa funerária do país — só em 2015 faturou 23 milhões de euros dos 192 milhões que os portugueses gastaram em cerimónias fúnebres (ver caixa). Optou por um “funeral o mais simples possível” (o plano mais caro pode custar quase 18 mil euros), sem grande pompa, com cerimónia religiosa na Igreja de São João de Deus ou na de Santa Joana Princesa. Já decidiu também que será cremada. Gostava que as suas cinzas fossem lançadas ao mar, um serviço oferecido também por outras funerárias — hesita apenas porque a Igreja Católica condena a dispersão das cinzas e ela não quer melindrar a irmã. Se decidir avançar, o plano que contratou já inclui transporte de barco para alguns familiares e amigos, “se eles quiserem assistir ao ritual”. Segundo o site da empresa, este pode ser feito “num iate de 32 lugares, num veleiro de 12 lugares ou numa lancha de nove lugares”. No final, a família recebe as coordenadas da localização onde foi colocada a urna biodegradável com as cinzas.


Como Maria, há cada vez mais portugueses a decidir programar (e pagar) o seu funeral antecipadamente. Em 2015, ano em que a Servilusa relançou o ‘Plano de Funeral em Vida’, criado em 2012, mais de duas centenas de clientes contrataram esta opção [no ano passado, a empresa ambicionava ultrapassar os 500 novos clientes do serviço, mas não confirmou ao Expresso se o objetivo foi atingido]. Há seis planos disponíveis, com preços dos 1900 aos 17.690 euros (neste caso com uma urna especial para jazigo em pau-santo, uma madeira do Brasil que pode durar mais de uma centena de anos), podendo o cliente escolher todos os pormenores da cerimónia, incluindo, se desejar, ter alguém a tocar harpa ou violino no velório, ou dar uma volta a um estádio de futebol. Em resposta à Servilusa, a Associação Nacional de Empresas Lutuosas (ANEL), a maior associação do sector (reúne quase metade das 1142 agências funerárias do país) está a preparar o seu ‘Plano Poupança Funeral’, que espera lançar ainda este ano. A ideia é o beneficiário “pagar por antecipação, fazendo um mealheiro para a sua morte”, explica o presidente da associação, Carlos Almeida. O funeral pode depois ser contratado a qualquer uma das agências (hoje 560) que integram a ANEL.

CREMAÇÃO GANHA ADEPTOS
Maria é também um bom exemplo de outra tendência: há cada vez mais portugueses a procurar a cremação. Apesar de Portugal ser ainda um dos países a nível europeu onde esta opção é menos utilizada, é inegável que a incineração de cadáveres, outrora um ritual de uma elite ateia das grandes cidades, tem ganho (muitos) adeptos: há dez anos, foram cremados no país menos de 7000 cadáveres, o que correspondia a 6,6% dos óbitos, e “chegava a haver cinco a sete dias de espera”, conta Paulo Moniz Carreira, diretor-geral de negócio da Servilusa; o número subiu para cerca de 17 mil (16% dos óbitos) no ano passado, ainda assim muito longe de países como o Reino Unido, a Suécia ou a Dinamarca, que têm taxas de cremação acima dos 75%.

Este aumento exponencial tem acompanhado a entrada em funcionamento de mais fornos crematórios em Portugal: em 1991, havia um único, no cemitério do Alto de São João, em Lisboa; há uma década eram quatro (dois na capital, um no Porto e outro em Ferreira do Alentejo); hoje são 24 (21 no continente, dois na Madeira e um nos Açores), seis dos quais pertencentes à Servilusa, que assegura já um quinto das cremações do país. Um fenómeno que veio aliviar a pressão sobre os cemitérios, que estavam sobrelotados. “O facto de não haver espaço nos cemitérios justificou o aparecimento de crematórios em alguns municípios”, considera o responsável da Servilusa, onde as cremações representam já quase 40% dos serviços fúnebres realizados.


A mudança nos ritos de morte é particularmente significativa nos grandes centros urbanos: em Lisboa, cerca de metade das pessoas opta por ser cremada, no Porto são quatro em cada dez. Mas o país é muito assimétrico também nesta realidade: nas zonas rurais a cremação é ainda muito incipiente e a sepultação do corpo continua a ser, de longe, a opção preferida das famílias. “É uma questão iminentemente cultural”, explica Carlos Almeida, presidente da ANEL. “Houve um êxodo das zonas interiores para as grandes cidades, o que provocou um certo desenraizamento. As pessoas já não vão à terra visitar a campa dos pais ou dos avós, e foram abandonando a ideia de sepultação como algo sagrado. A ideia mórbida da decomposição do cadáver fez progredir uma visão higienista, ou ecológica se preferirem, onde a cremação assume o papel de encerramento de um capítulo”.

O preço é outro fator que ajuda a explicar esta evolução: ainda que as taxas municipais para cremação sejam geralmente mais caras do que as de uma sepultura simples (em Lisboa, por exemplo, rondam os 150 euros, mas chegam aos 400 para não-residentes ou que não tenham morrido na cidade), a colocação do cadáver em sepultura acaba por ser mais onerosa, considerando o custo de uma lápide (pode ir dos 500 a vários milhares de euros), a limpeza e manutenção da sepultura ao longo dos anos e, no caso de se tratar de uma sepultura temporária, a exumação do cadáver e o destino a dar às ossadas.

CERIMÓNIAS MAIS PRIVADAS
Maria Melo sempre quis ser cremada, uma opção que em Portugal foi escolhida por vultos da cultura como José Saramago, Raul Solnado ou Rosa Lobato de Faria. “Acho que os cemitérios ocupam muito espaço e para as pessoas é uma obrigação terem de estar sempre a visitá-los. Ou então abandonam as sepulturas”, justifica. A deposição das cinzas no mar, a opção escolhida pela antiga assistente social, é uma das preferidas dos portugueses, a par da deposição num jardim, mas há quem escolha soluções mais originais. A Servilusa, por exemplo, disponibiliza um urna biodegradável onde a família pode enterrar as cinzas do ente falecido num vaso com uma árvore.

A mudança de mentalidade das gerações mais novas face à morte é também visível no facto de estas se estarem a desprender dos jazigos de família. “Há mais jazigos para venda. Muitos herdeiros não querem ficar com eles, mandam cremar os ossos e vendem o jazigo”, revela Carlos Almeida. Até imobiliárias como a Remax já entraram no negócio: na página da agência há um jazigo de 4 metros quadrados no Cemitério dos Olivais, em Lisboa, à venda por 130 mil euros. No OLX, site de anúncios classificados, as opções chegam aos 80 mil euros. “Em Lisboa, dois metros quadrados de terreno para uma sepultura familiar custam hoje 10 mil euros [sem a construção]. Nem no auge especulativo da Expo se viu isso”.

O presidente da ANEL, que foi oficial do Exército e tomou conta da funerária fundada pelos pais há 50 anos, a Alto de Pina, nota que houve “um declínio na dimensão social” dos funerais. “As cerimónias tornaram-se cada vez mais privadas, mais íntimas, para as pessoas mais chegadas, sobretudo nas grandes cidades. No interior é muito diferente, ainda é visto como um acontecimento social”.

FUNERAIS À LA CARTE
Em Portugal, o custo médio de um funeral ronda os 1770 euros, embora muitas funerárias disponibilizem pacotes básicos com velório que ficam abaixo do valor do subsídio por morte atribuído pela Segurança Social (€1263,96) — incluem urna, preparação e transporte do cadáver, coroa de flores, marcação de todos os procedimentos necessários, acompanhamento do processo burocrático, serviço de cafetaria, etc. De fora ficam as despesas com lápides ou jazigos, as taxas de inumação (sepultação de cadáver) ou de cremação, que variam de município para município, a ocupação da capela (pode ultrapassar os 250 euros), e o valor pago à Igreja, em caso de cerimónia religiosa, que varia de paróquia para paróquia.

Há muitas escolhas que podem elevar a fatura final, como a urna — a opção mais cara, em pau-santo do Brasil, pode custar alguns milhares de euros. Mas não só. Num país onde o velório com urna aberta ainda é uma tradição, são cada vez mais os portugueses que recorrem ao serviço de tanatopraxia, a conservação temporária do corpo de modo a apresentá-lo com uma aparência natural, eliminando as marcas que levaram ao óbito ou surgiram na sequência da morte. Uma imagem digna para a última homenagem ronda os 800 euros, mas pode superar os 1000 em casos mais complexos, sobretudo nas mortes que ocorreram como consequência de acidentes de viação graves, em que a reconstrução pode demorar várias horas.

Na Servilusa, que viu os acessos à sua página de internet duplicarem depois de ter realizado o funeral de Mário Soares, o cardápio de extras é longo: há quem escolha um minibus para levar a família ou um sidecar para transportar a urna (400 euros); quem queira ouvir um violino ou uma cantora lírica na cerimónia e quem prefira um “Noturno”, de Chopin, tocado à guitarra e à viola (450 euros); e quem opte por ter alguém a escrever e a ler no velório um texto sobre o falecido. No final, a fatura a pagar por estes serviços personalizados pode atingir valores impensáveis para muitos portugueses, “na ordem dos 20 mil euros”, revela Paulo Carreira. Somando o negócio das funerárias com todos os serviços associados, o responsável da Servilusa estima que o negócio da morte movimente em Portugal 350 milhões de euros por ano. Só a sua empresa emprega mais de 300 pessoas e tem 58 lojas no país, além de cinco centros funerários próprios com salas de velório.

A CONCORRÊNCIA DAS IPSS
Este mercado apetecível conta, desde 2015, com um novo interveniente, as Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS), apesar da oposição das associações do sector. Para Carlos Almeida, a abertura da atividade funerária ao sector social é desnecessária e contraproducente, não beneficiando o consumidor. “A responsabilidade social foi desde sempre assumida pelas empresas funerárias através do funeral social, pelo que não faz sentido entregá-la a amadores”. Segundo o presidente da ANEL, o que se verifica são “IPSS a cobrar valores idênticos aos cobrados pelas agências funerárias por funerais alegadamente de carácter social”. Com isso, perde também o Estado, “que verá as receitas fiscais diminuírem à medida que cresce a quota de mercado das IPSS e das mutualistas”.

Desde 2001, as funerárias são obrigadas a disponibilizar um funeral social com um preço máximo fixado por lei, inferior a 400 euros. O serviço inclui urna em madeira de pinho ou equivalente, ferragens, lençol, almofada e lenço, transporte fúnebre e serviços necessários à realização do funeral. De fora fica a cerimónia religiosa e uma capela mortuária para o corpo ser velado — a lei obriga apenas ao transporte do cadáver para o cemitério —, o que tem afastado muitos dos potenciais interessados. Apesar de o objetivo ter sido garantir um funeral digno para as pessoas mais necessitadas, estima-se que esta alternativa seja apenas utilizada em 1% dos óbitos. “As pessoas ainda se esforçam por não sair do padrão”, explica Carlos Almeida.


Paulo Carreira contesta a própria lei que criou o funeral social. “O Estado quis fazer ação social à custa dos privados, o que acho um abuso. É a lei que define as minhas margens, o meu custo... Também não se pode dizer que seja um funeral. É pegar no cadáver e levá-lo ao cemitério”. O responsável da Servilusa vai mais longe e defende também o fim do subsídio de morte atribuído pela Segurança Social. “É um subsídio que nem sempre ajuda as pessoas. Acaba, isso sim, por ser útil às funerárias, a maioria dos cidadãos nem tem conhecimento da sua existência. Durante alguns anos as agências convenciam famílias enlutadas a assinar uma procuração que lhes permitia aceder ao subsídio. Em troca ‘prometiam’ serviços fúnebres sem custos ou de custos reduzidos, fazendo um funeral abaixo do valor do subsídio e ficando com o remanescente”. Uma fraude que, admite Carreira, “tem vindo a mudar”, com um controlo mais apertado e eficaz da Segurança Social.

Segundo um estudo realizado pela Deco há quatro anos, o sector funerário continua a ser um negócio “pouco claro”, com queixas de clientes em relação a agências que alteram os preços dos funerais depois de estes se terem realizado, orçamentos pouco claros e aproveitamento da fragilidade das famílias num momento de dor. Nos últimos anos, as autoridades têm investigado vários esquemas de corrupção para favorecer certas agências funerárias, envolvendo pessoal hospitalar, bombeiros e até polícias. Em dezembro, por exemplo, a Polícia Judiciária fez buscas numa funerária e nos bombeiros da Batalha, após um alerta desta corporação, que diz ter recebido informações sobre um pretenso favorecimento a uma empresa. Dias antes, ficou a saber-se que o Ministério Público está a investigar um caso que envolve agentes da PSP de esquadras da Margem Sul, suspeitos de receberem dinheiro para aconselharem famílias a escolher determinadas agências. As primeiras denúncias públicas do caso surgiram no site TugaLeaks, que terá enviado à PSP uma lista de agências e de 18 agentes de Almada e do Laranjeiro alegadamente envolvidos no esquema. Ao “Público”, um agente da PSP afirmou que há colegas que recebem “400 a 600 euros por defunto”. Uma situação a que urge pôr fim, considera o diretor de negócio da Servilusa. “Acima de tudo, as pessoas devem ser livres de escolher a agência funerária e isso não acontece sempre. Muitas vezes são levadas a escolher”.

Maria já fez a sua escolha. Não está preocupada com a morte, não é algo que a assuste. “Já tenho 75 anos e as pessoas não são eternas, nem quero ser”. O importante é que se despedirá deste mundo à sua maneira. E com as contas saldadas.

Fonte: Jornal Expresso

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