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quarta-feira, 26 de novembro de 2014

No curto prazo, nada pode ser feito pela seca no sudeste, afirma futuro relator da ONU para o Direito à Água

Para o mineiro Léo Heller, futuro relator das Nações Unidas para o Direito à Água e ao Saneamento Básico, crise hídrica não tem solução imediata a não ser chuva e redução do consumo.


A crise hídrica no Sudeste não tem solução a curto prazo a não ser chuva e redução do consumo, afirma Léo Heller, futuro relator das Nações Unidas para o Direito à Água e ao Saneamento Básico. A partir de 1º de dezembro, o pesquisador e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) vai substituir a portuguesa Catarina de Albuquerque na ONU. O mandato dura três anos e pode ser renovado pelo mesmo período.

“Já estão adotando todas as medidas necessárias e usando o volume morto do reservatório. No curto prazo, é muito difícil pensar em outras soluções”, afirmou Heller, em entrevista à DW Brasil.

Caso não chova nos próximos meses, alerta o engenheiro, a situação pode ficar “dramática”.

Ele considera que o volume de água desperdiçada ao longo do sistema de abastecimento brasileiro “não é admissível”. “Ao invés de buscar novos mananciais, é mais ético trabalhar na redução dessas perdas.”

Heller é cauteloso ao falar do tratamento do esgoto para transformação em água de reúso. Recentemente, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, anunciou a construção de uma estação que irá empregar a técnica, com o objetivo de aumentar a oferta de água.

DW Brasil: O que o senhor acha que poderia ter sido feito para minorar a seca no Sudeste?

Léo Heller: Deveria ter tido um planejamento mais adequado, que levasse em conta a possibilidade de estiagem, que é um fenômeno natural e sazonal. Esses momentos precisam ser incluídos no planejamento. Os atuais mananciais e captações de água têm sido insuficientes para atender a demanda, isso requer aumentar e diversificar as fontes de água, não só quantitativamente, mas qualitativamente. Isso inclui água subterrânea e de chuva, por exemplo.

E do ponto de vista da demanda?

É preciso reduzir as perdas no sistema de abastecimento de água. Além disso, poderíamos consumir menos água com mudanças nos hábitos da população e com equipamentos mais econômicos, como a descarga dual (com dois botões, um para resíduos sólidos e outro para líquidos). Algumas cidades estão incentivando a captação da água da chuva no nível domiciliar para alimentar a descarga dos vasos sanitários. É uma solução muito inteligente, porque usamos uma água de altíssimo padrão, sem necessidade. E é onde mais se consome água nos domicílios.

O que pode acontecer caso não chova nos próximos meses no Sudeste?

A situação ficaria dramática e precisaríamos intensificar o racionamento. Eu prefiro pensar no longo prazo, que os gestores tomem as providencias necessárias para que, no próximo verão, isso não volte a acontecer.

Então, no curto prazo, não tem muito o que possa ser feito…

Não, não tem. Exceto campanhas para que as pessoas economizem. Já estão adotando todas as medidas necessárias e usando o volume morto do reservatório. No curto prazo, é muito difícil pensar em outras soluções.

Que medidas preventivas poderiam ter sido tomadas para economizar água?

Deveríamos ter feito gestão da demanda, trabalhado para diminuir o consumo de água, com campanhas contra o desperdício e combate às perdas. A redução da pressão também ajuda a diminuir o consumo. Todas essas medidas deveriam ter sido tomadas preventivamente.

Como o senhor vê a tentativa transferir água do Rio Paraíba do Sul para o Cantareira?

A transferência de água de uma bacia para alimentar a captação de outra, se for realizada e gerenciada de forma inteligente, pode ser uma solução. Desde que, obviamente, essa transferência não comprometa a água da bacia doadora. Aparentemente, estudos desenvolvidos pela própria ANA [Agência Nacional de Águas] mostram que isso não colocaria em risco o abastecimento dos outros estados. Mas isso precisa ser feito com muito cuidado.

Há uma mentalidade de que a água é um recurso infinito. Essa crise hídrica pode mudar isso?

A crise no Sudeste alerta para a necessidade de uma mudança de paradigma da gestão de água. Ela não é infinita e ela não tem um volume constante ao longo do ano e das décadas. Alguns autores falam que o abastecimento de água deve mudar de uma lógica linear – captação, uso e descarte – para uma lógica mais circular, com o reúso e outras fontes. Precisamos sair de uma acomodação e investir não só em novas obras, mas na modernização da gestão. É muito possível que uma parte do problema atual tenha origem nas mudanças climáticas globais, o que sinaliza que esse fenômeno pode ocorrer com mais frequência.

O que o senhor acha da proposta de multar pessoas que, por exemplo, seguem lavando carros e calçadas com mangueira, apesar da seca?

Associada a um conjunto de medidas, a multa pode ter efeito. Isoladamente é quase uma transferência de responsabilidade, como se os culpados fossem os usuários e o gestor não tivesse nenhuma responsabilidade. Isso não é correto. De certa forma, os modelos de tarifação de água hoje já incluem essa lógica, porque quem consome muito paga mais pelo metro cúbico. Só que esse modelo tarifário se demonstrou incapaz de coibir esse tipo de desperdício. Mas nós não temos ainda condições empíricas para dizer que as multas contribuiriam a redução do consumo. Pode ser que um proprietário muito rico concorde em pagar mais para continuar desperdiçando.

Estudiosos têm alertado para o desmatamento ao redor de represas, como o Cantareira, e mesmo na Amazônia, como um dos agravantes da seca. O senhor concorda que se dá pouca importância a esse fator no gerenciamento da água?

Sem dúvida. Os profissionais da hidrologia sabem muito bem disso. Não é apenas o desmatamento ao redor das represas que tem impacto, mas nas bacias hidrográficas inteiras. Quando há alterações importantes, no sentido de remover vegetação, ampliar a urbanização e iniciar práticas agropecuárias, a bacia perde sua capacidade de armazenar água. Ou seja, em época de estiagem, a vazão dos rios vai ser cada vez menor. As bacias no Sudeste são muito afetadas pela ação do homem, isso certamente explica parte do que está ocorrendo. Em relação à Amazônia, esse impacto ainda carece de uma comprovação mais firme.

Recentemente, o governo de São Paulo anunciou a construção de uma estação que para fazer o reúso do esgoto. O Brasil está avançado em relação ao reaproveitamento da água em comparação com outros países?

Nós estamos muito atrasados. Há várias formas de reúso, como reaproveitar a água para a irrigação ou para o vaso sanitário. Essa de transformar o esgoto em água potável é a mais radical. Existem tecnologias para isso, sim, mas são mais sofisticadas e nós estamos menos habituados a operá-las. É preciso muito cuidado, porque qualquer falha no processo pode levar a uma insegurança sanitária da população. E as falhas são possíveis em um processo novo, quando não temos mão de obra qualificada para isso. Tem que ter um controle muito fino ou podemos trazer risco para a população.

O senhor mencionou o reúso domiciliar, mas o que poderia ser feito em larga escala?

É possível pensar em grandes reservatórios de água de chuva para usos menos nobres. O problema é que muitas vezes esse reúso implica uma grande reformulação dos sistemas, tanto públicos, quanto domiciliares. Alguns países têm rede dupla na rua, uma para água mais pura e outra mais impura. Em uma cidade que já esteja totalmente consolidada, essa transformação é muito penosa. O que parece mais viável são pequenas mudanças em nível domiciliar, mais do que municipal. A tecnologia existe para qualquer tipo de reúso, mas precisamos observar a segurança sanitária, a viabilidade técnica e econômica.

O Brasil tem uma taxa alta de perda de água ao longo do sistema. O que pode ser feito em relação a isso?

Temos uma taxa média nacional de perdas na distribuição de 37%, segundo o SNIS [Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento]. É bem alta. Dificilmente chegaria a zero, mas os engenheiros trabalham com uma meta de 25%. Abaixo disso, costuma ser pouco viável economicamente. Ao invés de buscar novos mananciais, é mais ético trabalhar na redução desse desperdício. Para isso, faltam investimentos públicos e um programa de controle de perdas mais efetivo. Existem incentivos do governo federal, mas muitas vezes os gestores se acomodam e preferem fazer novas obras de infraestrutura do que trabalhar nesse ajuste fino, que requer um trabalho de detetive e dá pouca visibilidade. Do ponto de vista ético, não é admissível perder tanta água no sistema.

O que o senhor, como brasileiro, acha que o nosso país pode contribuir nesse debate sobre água e esgoto no mundo?

O Brasil avançou muito nos seus marcos legais e institucionais, isso pode ser um exemplo interessante. Nós temos agora uma lei nacional que estabelece a regulação da prestação do serviço de água e esgoto, além de um plano nacional e uma estrutura no governo que cuida disso. Também tem havido certa estabilidade nos financiamentos públicos federais para a área. Esse conjunto de medidas terá efeitos de longo prazo, elas prepararam o país para avançar muito na ampliação do acesso ao saneamento.

A maior parte dos brasileiros não tem acesso a tratamento de esgoto. Quais são os desafios para a universalização desse serviço?

Sem dúvida isso tem avançado lentamente, mas tem avançado. O Plano Nacional de Saneamento Básico dá prioridade a isso. A ideia hoje é não implantar nenhum sistema de coleta de esgoto sanitário que não tenha tratamento. Isso já vem sendo feito, mas nós temos um passivo muito grande e superá-lo é um desafio enorme.

Matéria de Marina Estarque, da Deutsche Welle, DW.DE

Fonte: EcoDebate

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