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quarta-feira, 29 de abril de 2015

Especialista em gestão da água ressalta que adoção de medidas e uso racional podem reverter o estresse hídrico

No Brasil, ainda hoje tem-se uma cultura de uso não racional de água, estimulada pela percepção de que se trata de um recurso abundante que “nunca vai faltar”, disse a diretora da Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo (FEC) da Unicamp, professora Marina Ilha.


Ela é especialista em questões de gestão da água em edificações e lotes urbanos e tem orientado pesquisas sobre o tema. “Temos desenvolvido pesquisas nessa área no Brasil, de modo mais incisivo a partir do final da década de 80, e no início eram poucos os que se preocupavam com o uso eficiente da água, as pesquisas estavam mais voltadas para as questões relacionadas com a oferta de água”, declarou ela, em entrevista ao Jornal da Unicamp. “O enfrentamento da crise hídrica precisa contar com a gestão conjunta da oferta e da demanda de água”.

“As edificações necessitam de abastecimento de água potável, o uso da água gera esgoto sanitário, a impermeabilização das superfícies diminui a infiltração de água no solo e a redução da cobertura vegetal resulta na diminuição da evapotranspiração, ou seja, tem-se um ciclo da água nas cidades totalmente insustentável”, explicou. “E aí as consequências são essas que temos vivenciado: de um lado, maior ocorrência de enchentes e, de outro, crises de abastecimento causadas tanto pelas modificações climáticas como pelo uso não eficiente da água, entre outras questões”.

A pesquisadora afirma que existem várias medidas que podem ser implementadas para que se tenha um ciclo da água sustentável nas cidades. Associadas à gestão dos recursos hídricos, essas medidas podem contribuir para reverter o estresse hídrico em que se encontram algumas regiões do país.

Como consequências imediatas do uso racional da água tem-se a diminuição do volume de esgoto gerado, dos insumos necessários para o tratamento de água e de esgoto, da energia necessária caso a água venha a ser bombeada, entre outros benefícios, disse Marina.



RACIONAL, NÃO RACIONADO

A pesquisadora ressalta que o uso racional ou eficiente da água não é o mesmo que racionamento.  “O conceito que trabalhamos é: reduzir o consumo de água, sem prejuízo do desempenho”, disse. “É reduzir o desperdício e as perdas”.

Em alguns casos, disse ela, o consumidor final nem percebe que menos água está sendo utilizada. “Medidas tais como o controle das pressões no sistema predial de água, o emprego de tecnologias economizadoras e procedimentos voltados para o uso eficiente implicam em grandes economias de água”.

Ela cita, como exemplo, a pressão da água nas torneiras de lavatórios. “Quando você vai lavar as mãos, você quer lavar as mãos, não a roupa”, disse. “Muitas vezes, a pressão é tão elevada que pouquíssima água, daquela que saiu da torneira, está sendo utilizada para efetivamente lavar as mãos, muito daquele volume está sendo desperdiçado. Além de um projeto bem feito, há tecnologias economizadoras que podem ser previstas nesses locais”.

A pesquisadora lembra que é preciso pensar no uso eficiente da água não somente no projeto de novas edificações, mas também na redução do consumo nas edificações existentes. “A instalação de tecnologias economizadoras nos pontos de consumo, tais como torneiras economizadoras, arejadores, reguladores e restritores de vazão podem ser instalados de forma fácil e rápida”, disse ela.  “Mesmo a troca de bacias sanitárias convencionais, que podem utilizar até 12 litros por descarga, por modelos economizadores que empregam 7 litros por descarga ou até metade desse valor, quando há componentes de duplo acionamento, não exige grandes obras e resulta em reduções significativas do volume consumido, e, o que é mais importante, não altera o desempenho para o usuário”.

Há algumas situações, contudo, em que o fator humano é determinante e a adoção de procedimentos voltados para o uso eficiente da água é mais efetiva, adverte. “Tem sentido lavar pisos do jeito que muitos lavam aqui, no Brasil? Com mangueira? Levar uma folha desde um local a outro com água, o que poderia ser facilmente feito com uma vassoura? Não tem sentido”, exemplifica. “Sempre tivemos essa ideia de que uma limpeza bem feita requer muita água, e isso precisa ser modificado”.

Alterar comportamentos, no entanto, pode se mostrar complexo. “Mudar procedimentos é mais difícil, porque as pessoas, muitas vezes, são sensíveis aos problemas ambientais, estão preocupadas com a devastação das florestas, com a poluição ambiental, com a extinção dos animais, mas isso nem sempre se traduz na mudança de hábitos simples do dia-a-dia, tais como fechar a torneira enquanto se ensaboa a louça ou se escova os dentes, diminuir o tempo de banho, etc.”

Ao longo dos últimos anos a FEC realizou várias pesquisas voltadas para o uso eficiente da água nos edifícios, resultando em dissertações de mestrado, teses de doutorado e iniciações científicas, além de trabalhos de final de curso dentro da Engenharia Civil. “Os resultados foram sempre muito positivos, com a identificação de estratégias que podem resultar em grandes reduções no consumo de água”, disse Marina.

Ela lembra que dissertações e teses estudaram o uso da água no campus Zeferino Vaz da Unicamp. “Por meio da detecção e conserto de vazamentos e instalação parcial de tecnologias economizadoras, obteve-se uma redução de 25% do consumo, ainda na década passada. Medidas propostas naquela época passaram a ser incorporadas nas novas edificações, o que fez com que o consumo do campus se mantivesse nos mesmos patamares, mesmo com o aumento de cursos e instalações ao longo dos anos”.

“Também na década passada desenvolvemos uma ampla pesquisa em 93 escolas municipais de Campinas”, lembrou. “Entre os resultados obtidos, propusemos um índice de percepção dos usuários para o uso racional da água nesse tipo de edificação, permitindo identificar as atividades em que há mais desperdício”.



REÚSO E ÁGUA DA CHUVA

A pesquisadora adverte para soluções que, improvisadas diante da crise hídrica atual, podem acabar acarretando problemas de saúde pública se não forem bem administradas, como o aproveitamento doméstico de água da chuva ou o reúso de água sem o tratamento correto e a gestão da qualidade da água não potável. “No momento em que fontes alternativas de água são alocadas nas edificações, de quem é a responsabilidade pela qualidade dessa água? Mesmo que não seja para beber, o contato com a água com contaminantes pode causar alergias e outras doenças”, disse Marina. “Problemas advindos de uma má gestão podem ‘condenar à morte’ soluções importantes que, no futuro, podem ser indispensáveis”.

A pesquisadora lembra que a água pluvial pode se contaminar durante a passagem por telhas e calhas, além de entrar em contato com a poluição ambiental. “As edificações não dispõem de técnicos que realizem o monitoramento da qualidade da água, e é importante alertar a população dos riscos”.

Já as chamadas “águas cinzas” são as provenientes de lavatórios, chuveiros, banheiras, máquinas de lavar roupas. “Implantar sistemas de reúso de águas cinzas em edificações existentes requer modificar todo o sistema de esgoto, de modo a separar as chamadas ‘águas negras’, das bacias sanitárias, que no sistema convencional são coletadas em conjunto com as águas cinzas”, explicou a pesquisadora. “Ou seja, pode ser inviável economicamente”.

Marina afirma que em edificações comerciais e industriais, onde há equipes de gestão para fazer o monitoramento da qualidade da água não potável, o aproveitamento de água de chuva pode e deve ser feito.

“Recentemente, orientei uma tese de doutorado sobre o uso de um coagulante natural para tratamento da água residuária de usinas de concreto para fins de reúso na própria usina”, relatou ela. “Verificamos que mais da metade do consumo de água potável poderia ser substituído por água de reúso, após passagem por um sistema de tratamento. Essa tese recebeu, no final de 2014, o 1º lugar no prêmio de inovação e sustentabilidade da Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC), na categoria de pesquisa”.

Ela relata que existem outros “tipos de águas” que também podem ser aproveitados, como as chamadas “águas claras”, efluentes gerados em sistemas de resfriamento, sistemas de vapor e condensado, de destilação, entre outros. “Pesquisas que desenvolvemos no Hospital de Clínicas (HC) da Unicamp indicam que grandes volumes de água poderiam ser reutilizados para fins não potáveis no campus como um todo, onde existem vários equipamentos e sistemas similares aos que estudamos”.

Mas a implantação em edificações existentes nem sempre é simples. “Há necessidade de um sistema separado de abastecimento de água potável, incluindo reservatórios, bombas, além dos tubos e conexões, além do sistema de tratamento, cuja instalação demanda espaços muitas vezes inexistentes na edificação”.



REGRAS DIFERENCIADAS

Marina acredita que a legislação sobre edificações deveria prever exigências diferenciadas sobre o uso eficiente da água, dependendo do tipo de edificação e da situação de estresse hídrico local. “O estabelecimento de regras generalizadas pode levar ao descumprimento das mesmas”, adverte. “O consumo de água nas indústrias tem uma grande margem de redução, tanto pelo emprego de tecnologias economizadoras como de sistemas de água não potável”.

A pesquisadora defende também o aumento do reúso de água urbano, em que o efluente da estação de tratamento de esgoto apresenta qualidade, na maioria das vezes, maior do que a da água do rio em que será lançado. “As cidades brasileiras não foram projetadas com rede de abastecimento de água não potável e depende-se do uso de caminhões-pipa para a distribuição, o que contribui para uma participação ainda tímida dessa fonte. Há necessidade de melhorar esta logística de distribuição, tendo em vista que a implantação de rede dupla de abastecimento urbano apresenta impedimentos que a tornam inviável economicamente. Alem disso, há necessidade de adaptação da rede predial, já que a água não potável não pode ser misturada à potável”.



INCENTIVO

Marina defende o uso de incentivos para a adoção de medidas economizadoras de água. “Obviamente que a tarifa também é uma forma de induzir ao uso eficiente, mas há que se levar em conta que a água é um bem essencial, sendo necessário manter tarifas sociais”, lembrou.

A pesquisadora enumera algumas possibilidades, como a redução de impostos condicionada ao emprego de medidas de uso racional; e programas, em larga escala, de substituição de componentes convencionais por economizadores, com subsídios para a compra e instalação. “Esses são exemplos de incentivos que podem ser muito mais efetivos do que simplesmente estabelecer porcentagens de redução de consumo padronizadas, que tem sido a sistemática adotada no país”, disse.

“As concessionárias de água e esgoto também precisam incentivar para o uso eficiente de água nos edifícios, uma vez que isso pode possibilitar a oferta de água para mais pessoas com a mesma infraestrutura instalada e garantir o abastecimento em situações de crise”, declarou.

Texto: Carlos Orsi
Fotos: Antônio Scarpinetti
Edição de Imagens: Fábio Reis

Fonte: Jornal da Unicamp Nº 623

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