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sábado, 26 de novembro de 2016

Cochichar com os mortos

A cremação retira-nos parte do processo de luto, torna a cena demasiado técnica, mecânica, amoral, quando se quer uma cena telúrica, orgânica, moral.

É uma discussão recorrente nos jantares de família: depois de muito espernear, a minha mãe decreta que o seu corpo deve ser cremado após a morte; na resposta, digo que tudo bem, sim senhora, mas tens de deixar isso lacrado num notário, porque, se depender de mim, vais ser sepultada. Os animais podem ser queimados, as pessoas não. Os mortos só se queimam se os quatro cavaleiros do apocalipse andarem a fazer das suas. Ora, alguém tem visto por aí o Armagedão? Não, pois não? A igreja tem toda a razão quando diz que os mortos devem ser enterrados debaixo de sete palmos de terra. Até porque a cerimónia da morte é para os vivos, não para os mortos. E o ponto é que a cremação retira-nos parte do processo de luto, torna a cena demasiado técnica, mecânica, amoral, quando se quer uma cena telúrica, orgânica, moral. Por exemplo, ver o caixão a entrar naquele pequeno abismo pode ser chocante, sem dúvida, mas é um choque necessário ao luto, tal como o simples gesto que é atirar uma mão cheia de terra lá para dentro - um adeus derradeiro que não é possível no crematório.

Por outro lado, a cremação concentra a cena num só dia. Depois do procedimento, os familiares recebem uma urna com cinzas que espalham nesse mesmo dia num local escolhido pelo falecido. Se não se importam, este paganismo está 4000 anos atrasado. A morte assim deixa de ter uma morada concreta. E, sim, a morte precisa de código postal, porque o luto é um processo que leva anos a estar concluído. É preciso visitar e revisitar a morte. É por isso que antigamente usávamos o Dia de Todos-os-Santos para visitar cemitérios e não centros comerciais. Lembro-me bem da força que esse dia nos dava quando era garoto. Os meus avós morreram em 1987 (ele) e 1996 (ela) e, de ano para ano, a dor foi sendo diluída no ritual do Dia de Todos-os-Santos. Eu, o meu irmão e os meus pais voltávamos ao bairro, almoçávamos com a família alargada, depois da bica íamos a pé até ao cemitério, comprávamos flores nas senhoras à porta e dirigíamo-nos, cada um a seu ritmo, às campas. De herança alentejana, não tínhamos educação católica, mas ali o que menos interessava era o formalismo. O que interessava era a forma como cada um de nós falava com a avó e com o avô. A minha mãe não falava. Eu cochichava. Enquanto limpava a campa, a minha madrinha falava mesmo a sério como se eles estivessem ali. No final, voltávamos da morte mais conciliados com a vida. Regressávamos a sorrir, bebíamos chá de cidreira numa algazarra, lanchávamos junto da lareira. Se o dia fosse perfeito, terminava com um jantar regado com um jogo do Benfica na TV.

Voltei sempre mais vivo deste cochicho com a morte. Um cochicho que agora quero refazer. Os meus avós maternos já não têm morada terrena, mas agora os meus avós paternos estão lá enterrados no mesmo cemitério junto à A1. Quero refazer o ritual, quero passá-lo às minhas filhas: a mesma mesa, o mesmo passeio, as mesmas flores, o mesmo cochicho, o mesmo regresso para a lareira, tudo já a pensar no dia em que a avó delas subirá à eternidade sem passar pelo crematório.

Fonte: Renascença

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