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quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

Uso de tornozeleira eletrônica se acelera no Brasil, mas não esvazia cadeias

Previsto na legislação brasileira desde 2010, o monitoramento eletrônico de presos experimenta uma explosão no país, mas não consegue cumprir seu principal objetivo: reduzir a superlotação nas cadeias.


A medida também se espalha sem padrão nacional de uso e em desrespeito à dignidade do detento, que tem dados pessoais expostos e pode passar horas por dia atado a tomadas para recarregar os aparelhos.

Essas são conclusões do primeiro diagnóstico nacionalsobre o uso de equipamentos tecnológicos – como tornozeleiras e braceletes – para vigiar detentos no Brasil, encomendado pelo Ministério da Justiça ao Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento).

De acordo com o levantamento divulgado nesta terça-feira, ao qual a BBC Brasil teve acesso com exclusividade, há 18.172 pessoas monitoradas por esses dispositivos no Brasil, sendo 88% homens e 12% mulheres.

Embora o número represente apenas 3% da população carcerária nacional – a quarta maior do mundo (atrás apenas de EUA, China e Rússia), com 607.731 pessoas – o uso desse aparato vem se multiplicando em ritmo acelerado pelo país.

A economia de custos para o poder público ajuda a explicar a disseminação. Enquanto o custo mensal por monitorado varia de R$ 167 a R$ 660 (média de R$ 301), no sistema prisional o gasto por detento vai de R$ 1.800 a R$ 4.000.

A expansão popularizou a tornozeleira eletrônica, o dispositivo mais usado, na crônica policial brasileira. Mais de dez executivos e empresários denunciados na operação Lava Jato, por exemplo, usam o equipamento 24 horas por dia.

Quem carrega o aparelho não o tira para dormir e nem para tomar banho. Tampouco pode ultrapassar uma área restrita determinada pela Justiça – caso o faça, o dispositivo com tecnologia GPS vibra, emite sons de alerta e comunica a violação à central de monitoramento.

Ao todo, 19 Estados já adotaram a solução – dois deles (Sergipe e Santa Catarina) em fase de testes. E o Ministério da Justiça acaba de anunciar R$ 24 milhões para montar novas centrais de monitoramento pelo país.

Mas problemas verificados nos Estados – e o novo diagnóstico nacional sobre o tema – colocam em xeque a eficácia dessa política como meio de enfrentar o caos nas prisões brasileiras.

"Temos receio que esse recurso seja entendido como panaceia. É uma medida importante e que funciona, mas temos que implantá-la com bastante cuidado", afirmou à BBC Brasil o diretor-geral do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), Renato de Vitto.

Punição x liberdade
O marco zero do uso dessa tecnologia para controle penal no mundo ocorreu em 1977, nos Estados Unidos. Um juiz de Albuquerque, no Novo México, inspirou-se em um episódio do desenho animado Homem-Aranha em que o herói era monitorado por um bracelete colocado pelo vilão. Encomendou um dispositivo a um perito em eletrônica e determinou os primeiros monitoramentos em 1983 – hoje são cerca de 100 mil presos com esses dispositivos nos EUA.

No Brasil, a lei 12.258, de 2010, introduziu a possibilidade de monitoramento eletrônico em dois casos: saída temporária de preso em regime semiaberto e cumprimento de pena em prisão domiciliar.

No ano seguinte, uma alteração no Código de Processo Penal incluiu o uso das tornozeleiras como "medida cautelar diversa da prisão". Exemplos de outras "medidas diversas da prisão" são comparecimento periódico à Justiça e proibição de acesso a determinados lugares, como bares.

A ideia era tentar reduzir o alto índice de presos provisórios (sem condenação) no Brasil, que chega a 41% do universo prisional – quatro em cada dez detentos no Brasil são provisórios.

Um terço desses presos provisórios acaba não sendo condenado quando vai a julgamento, o que reforça a condição do Brasil como um dos países que mais encarcera seus cidadãos no mundo – a taxa é de 300 presos por 100 mil habitantes, ante média mundial de 144.

Ocorre que, como o diagnóstico do Pnud mostra, o uso de tornozeleiras eletrônicas no país é determinado como medida diversa da prisão e protetiva de urgência (situações de violência doméstica) – possibilidades reais de esvaziar as cadeias – em apenas 12% dos casos.

Leia também: Como Cingapura venceu o mosquito Aedes aegypti – e por que é tão difícil outros países fazerem o mesmo

O uso principal da tecnologia se concentra na fase de execução penal, ou seja, penas que já estavam previstas, e não alternativas à prisão. Do total de presos com os dispositivos, predominam regime aberto em prisão domiciliar (25,9%), semiaberto em prisão domiciliar (21,8%), semiaberto em trabalho externo (19,8%), saída temporária (16,5%), fechado em prisão domiciliar (1,7%) e liberdade condicional (0,1%).

"Observamos que a monitoração eletrônica não vem se configurando como uma alternativa à prisão, mas como um instrumento aliado aos movimentos de controle social e de recrudescimento do poder punitivo", conclui o relatório.

Sem padrão
O diagnóstico critica a falta de um padrão nacional de atuação em monitoramento eletrônico. Cada Estado, por exemplo, adota seu procedimento caso haja uma violação por parte do preso – em alguns casos, o simples descarregamento da bateria pode mobilizar vários policiais para uma nova prisão, o que poderia ser evitado com um telefonema ao detento.

"A inexistência de consensos básicos na aplicação dos serviços também fomenta respostas pautadas em excessivo controle disciplinar. (...) A adoção de procedimentos que privilegiem a prisão como resposta central a violações podem qualificar os serviços de monitoração eletrônica como arenas de retroalimentação do sistema prisional", conclui o relatório.

O trabalho do Pnud aponta ainda "uma série de problemas" envolvendo proteção de dados nas centrais de monitoramento, como informações pessoais e de localização dos detentos. Não há, por exemplo, uma norma para compartilhamento de informações com a polícia, o que transforma os indivíduos com tornozeleira em "suspeitos permanentes".

"De forma ainda mais preocupante, em alguns casos, cultiva-se a ideia de que o compartilhamento de tais dados com a polícia é uma prática adequada à monitoração que protege o próprio monitorado (...), o que evidencia violação constitucional quanto à presunção de inocência", diz o texto.

O relatório aponta que o uso da tornozeleira provoca danos físicos e psicológicos, e que a maioria dos Estados não tem enfrentado esse problema. Apenas seis Estados (CE, ES, MG, PA, PI e RS) por exemplo, incluem psicólogos e assistentes sociais nas equipes envolvidas com os serviços de monitoramento.

"É comum ouvir relatos afirmando que sem a atuação desses profissionais – psicólogo, assistente social e/ou técnico em direito – o índice de violação cresce, especialmente porque ajudariam o monitorado a aderir às normas que a nova condição carrega, explicando, num esforço de socialização, mudanças e limitações em suas rotinas decorrentes do uso do equipamento", conclui.

A pesquisa cita casos de presos que precisam comparecer às centrais de monitoramento e ficam "agrupados e expostos na rua, esperando por um atendimento que pode demorar horas." "Sem espaço e estrutura adequada, os monitorados de alguns Estados se acomodam no chão", cita.

Falhas de segurança
Em fevereiro deste ano, uma equipe da Polícia Rodoviária Federal prendeu, em Porto Alegre, dois homens em um carro com placa clonada e objetos recém-furtados. Um deles era preso com tornozeleira – devidamente envolta em alumínio para bloquear o sinal emitido pelo aparelho.

Casos como esse são comuns pelo Brasil, e não há solução tecnológica até o momento – a ausência de sinal, contudo, é notificada nas centrais.

Para o juiz Sidinei José Brzuska, da Vara de Execuções Penais da capital gaúcha, isso mostra que a tornozeleira não é "salvação da lavoura". "O sistema funciona bem para quem não tem vínculo com criminalidade ou não quer saber mais do crime. Quando o sujeito é ativo no crime, não funciona, ele irá fazer de tudo para burlar", afirmou à BBC Brasil.

Em Minas Gerais, a Assembleia Legislativa do Estado investigou neste ano denúncia de venda de lacres das tornozeleiras dentro da unidade de monitoramento, mas nada ficou comprovado.

Apesar dos problemas, a perspectiva é de continuar a expansão do sistema pelo país nos próximos anos – somados, os contratos atuais de cada Estado já contemplam a capacidade de monitorar 40.431 presos.

A empresa Spacecom, de Curitiba, é a principal fornecedora do país, com cerca de 90% do total dos contratos. Para Sávio Bloomfield, dono da firma, há "muita desinformação" na mídia sobre problemas técnicos. "O potencial de uso é muito maior", disse.

Renato de Vitto, diretor-geral do Depen, diz que o governo irá manter a consultoria do Pnud para desenvolver soluções para os problemas identificados no diagnóstico. O foco do Ministério da Justiça, diz ele, será usar a tecnologia para reduzir a população de presos provisórios.

"A tornozeleira não é brincadeira, traz marcas de estigmatização. Temos que usá-la com prudência, de forma proporcional às infrações. Quando a utilizamos como medida alternativa a chance de reincidência é dez vezes menor. Evitar o encarceramento nocivo é obrigação do sistema prisional". afirma.

Fonte: BBC Brasil

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