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quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Multidão nas ruas. Novos ventos na conjuntura brasileira?

A análise da Conjuntura da Semana é uma (re)leitura das Notícias do Dia publicadas diariamente no sítio do IHU. A análise é elaborada, em fina sintonia com o Instituto Humanitas Unisinos – IHU, pelos colegas do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT, parceiro estratégico do IHU, com sede em Curitiba-PR, e por Cesar Sanson, professor na Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, parceiro do IHU na elaboração das Notícias do Dia.

Sumário

Multidão nas ruas

Junho 2013. Irrupção que vem de longe
Julho de 2013. Os rastros de Francisco no pós-manifestações
Junho 2013 não terminou
Elites ouvirão o ‘estrondo das ruas’?

Eis a análise.

Multidão nas ruas

Dois acontecimentos aparentemente díspares ganharam em sinergia midiática, simbólica e política: as grandes manifestações de junho de 2013 e a visita do papa Francisco em julho 2013. Em apenas dois meses, estima-se que pelo menos cinco milhões de brasileiros tenham ido às ruas.

Em comum, a multidão na rua e a potência da juventude. De um lado, os acontecimentos de junho de 2013 – o ‘eu me represento’, a conjunção de singularidades-subjetividades produzindo o comum que diz ‘muito mais que 0,20 centavos’; do outro um papa que circula de carro com o vidro aberto, simbologia que remete aos que –poder- em seus carros com insulfilm não veem e não ouvem o ‘estrondo das ruas’.

Produzirão os eventos de Junho e Julho de 2013 mudanças significativas na conjuntura sociopolítica e econômica brasileira?

Junho 2013. Irrupção que vem de longe

No dia 22 de janeiro, publicávamos a análise de conjuntura intitulada “2013: Uma agenda regressiva? O ano dos movimentos sociais?” Comentávamos nessa análise: “O ano de 2013 anuncia mais do mesmo. O foco central permanece na economia como meio e fim na estratégia governamental de inclusão social. A concepção do modelo em curso sugere a inclusão via mercado. Já não se trata de um modelo de transformação, via reformas estruturais, mas de aderência à lógica produtivista-consumista e mitigação da pobreza via programas e políticas sociais compensatórias”.

Na mesma análise dizíamos que “o cenário para 2013 é o de uma agenda regressiva na área social” e afirmávamos que “a ausência, entretanto, das demandas sociais na agenda do governo ou o tratamento tímido que é dado a essas temáticas, pode desaguar numa retomada das lutas sociais”. Concluíamos com a afirmação que “2013 sinaliza para o ascenso das lutas sociais”.

Cinco meses depois, grandes manifestações tomavam conta das ruas. Acertamos no diagnóstico, mas erramos no sujeito político à frente da retomada das lutas sociais. A análise sugeria a possibilidade de retorno às ruas de organizações sociais conhecidas como o MST, a CUT, os movimentos sociais urbanos e os partidos políticos de esquerda. Estes também foram para as ruas, porém caudatários de um novo tipo de movimento.

Os acontecimentos de junho de 2013 – o “eu me represento”, a conjunção de singularidades-subjetividades produzindo o comum – surpreendeu a todos por não se enquadrar nos manuais clássicos de análise – sem direção, sem organicidade, sem fundamentação teórica explícita. O seu conteúdo e a indignação formulada na consigna “muito mais do que 20 centavos”, encontra suas raízes, entretanto, na análise que publicávamos em janeiro de 2013 que falava das grandes questões estruturais não enfrentadas pelo país.

Aliás, não foi apenas essa análise que precedeu os eventos de junho em seu conteúdo. Outras análises, na contramão e na contracorrente de que tudo ia bem no país – ufanismo pela crescente mobilidade social – indicavam problemas sérios no modelo em curso no país.

Destacamos, entre elas, a análise publicada em 18 de março em que chamávamos a atenção pelo vale tudo pela manutenção da coalizão de governo que resultou em coisas insólitas como as nomeações de Blairo Maggi para a Comissão do Meio Ambiente e de Marco Feliciano para a Comissão de Direitos Humanos.

A análise publicada em 15 de abril ao analisar os 10 anos do PT no poder, perguntava sobre a experiência da esquerda no poder: “grande transformador social ou o grande articulador do capitalismo brasileiro”? e chegava à conclusão da falta de ousadia e os limites de um modelo que rendeu-se ao economicismo, além de ter contribuído para o esvaziamento do movimento social.

A relação do movimento social com o governo foi tema da análise publicada em 06 de maio e nela falávamos da dificuldade de diálogo com o movimento social que questionava a natureza e a essência do modelo.

Nessa análise comentávamos: “Poder-se-ia dizer que o governo ‘sabe’ conversar com movimentos que estão na esfera produtivista-consumista, na esfera do formal, subordinada ao modelo fordista desenvolvimentista. O governo dialoga com o movimento “branco”, “disciplinado” às regras do jogo por ele imposto, porém, não sabe dialogar com os movimentos “étnicos”, com os movimentos que estão fora da lógica formal ou que não aceitam e resistem subordinar-se à agenda fordista desenvolvimentista”.

Surpreendentemente, um pouco mais de um mês depois, Dilma Rousseff recebe no Palácio do Planalto representantes do Movimento Passe Livre – MPL. Algo absolutamente improvável, inimaginável e impensável semanas antes. A resistência de Dilma em dialogar com movimentos sociais refratários à sua política foi vencida pelas ruas.

Um conjunto de outras análises colocava em debate o descaso da agenda indígena por parte do governo. Destacam-se aqui as análises de 22 de abril e 20 de maio. Ambas falavam dos retrocessos gigantescos do governo na abordagem da agenda indígena e na área ambiental.

Os problemas postulados no conjunto dessas análises ganharam as ruas em junho de 2013.

Julho de 2013. Os rastros de Francisco no pós-manifestações

Outro evento, na esteira da multidão que tomou as ruas, merece destaque e reflexão. Não pela similaridade de forma, mas porque arrastou milhares para as ruas e porque a mensagem reafirmou a agenda do junho de 2013. Estamos falando da visita do papa Francisco que circulando com o carro de vidro aberto mandou um recado para o mundo da política que as manifestações já haviam enviado: transparência.

Mas não foi apenas o vidro aberto, foi muito mais. As mensagens da centralidade do protagonismo dos jovens e seu papel transformador e do lugar que o pobre deve ocupar na agenda do país somaram-se e ganharam em sinergia com o que aconteceu no mês anterior.

Passado todo o burburinho da imprensa nacional e internacional a respeito da participação do papa Francisco na Jornada Mundial da Juventude, no Rio de Janeiro, é o momento de reunir, para além da espetacularização promovida pela grande mídia, as contribuições de sua visita ao país, que viu ainda mais fortemente suas estruturas de representação abaladas pelas grandes manifestações de junho.

A agenda de Francisco no Brasil foi cheia, além da participação com os jovens da Jornada, esteve no Santuário de Aparecida, na favela de Varginha, num hospital, com dependentes químicos, com políticos e organizações civis, bispos católicos, etc. O país pôde acompanhar a cobertura da maioria de suas atividades, porém, como escreveu a jornalista Magali do Nascimento Cunha, “os inevitáveis destaques aos discursos do papa Francisco sobre a justiça para os pobres e sobre o privilégio pastoral para as periferias soaram como fora de lugar nos textos dos telejornais”.

A grande mídia procurou muito mais assimilar o caráter despojado e humilde do papa Francisco com o tradicionalismo religioso. Contudo, a presença de Francisco, com seu estilo de lidar com as multidões, parece haver transcendido as tentativas de apreendê-lo em interpretações rasas. Por quê?

A resposta para esta questão foi muito bem apresentada por Edson Barbosa, dono de uma agência de marketing. Segundo Barbosa, “a chegada do papa Francisco ao Brasil pós-manifestações mostrou um caminho”. Aí está a sua novidade. Com seus gestos e atitudes, Francisco ridicularizou os níveis de ostentação e de distanciamento dos políticos em relação ao povo. “A grande lição do Papa foi mostrar simplicidade: sou assim, minha prática é essa, ando com minha maletinha de mão, vou ao barbeiro, sou amigo do rabino. Ele não é uma imagem, é uma essência. Por isso essa imensa aprovação”, disse então o entrevistado.

Para Barbosa, chama à atenção a espontaneidade e naturalidade da visita do Papa. O fato de andar com o vidro do carro aberto é um sinal de confiança naquilo que se é. “Quando o homem público é realmente verdadeiro, sua maior segurança é o povo”. Além do mais, mostrou-se um líder aberto, que coloca as cartas na mesa. Francisco não se eximiu de fazer “críticas verdadeiras e substantivas à própria instituição que dirige”. Nisto, Barbosa avalia que o Papa “dá uma lição – sobretudo para o mundo da política, para o mundo da relação das elites com o povo -, sintetizada numa frase: ‘Baixe o vidro, pessoal’”. Neste sentido, o Papa vai ao encontro das expectativas das pessoas. Como bem avalia Barbosa, “o povo está querendo que as coisas sejam postas às claras”. Neste contexto, “o povo não foi para as ruas atrás de interesses mesquinhos. A pauta é aberta”.

E nesta pauta extremamente aberta, de uma forma ou de outra, Francisco tocou. Com bem avaliou Henri Tincq, em matéria publicada no sítio Slate.fr, “no Rio, ele convidou os jovens a uma “fé revolucionária”. Os jovens devem ser os “protagonistas da mudanças”, disse. Eles têm que “fazer barulho”, se necessário “fazer bagunça”. Eles têm razão em serem desconfiados das “instituições políticas” em que descobrem “egoísmo e corrupção”. O Papa, neste âmbito, não teve medo de que fosse envolvido na crise de representação vivida pelo Brasil. Em suas palavras, “entre a indiferença egoísta e o protesto violento, sempre há uma opção, a do diálogo”. Bem como: “Não haverá nem harmonia, nem felicidade para uma sociedade que marginaliza e abandona uma parte de si mesma”.

Foi neste clima que os discursos do papa Francisco se colocaram. Cabe ressaltar, por exemplo, o resumo apresentado pelo teólogo Paulo Suess a respeito das palavras do Papa, no Teatro Municipal, para pessoas distantes do âmbito eclesial. O teólogo destaca os seguintes pontos:

- “O cristianismo une transcendência e encarnação. Por conseguinte, procura unir e revitalizar o pensamento e a vida, e dar à racionalidade científica e técnica um “vínculo moral”.

- A vida nos cobra responsabilidade social que assumimos pela política. Por conseguinte, precisamos “reabilitar a política, que é uma das formas mais altas da caridade”.

- A política deve evitar o elitismo da democracia representativa, muitas vezes fechada no mero equilíbrio de representação de interesses; deve incentivar “cada vez mais e melhor a participação das pessoas” com a finalidade de assegurar a todos “dignidade, fraternidade e solidariedade”.

- Participação e diálogo entre as diversas riquezas culturais fazem crescer o país. A única maneira para fazer avançar a vida dos povos é o diálogo e a cultura do encontro.

- As “grandes tradições religiosas” podem desempenhar um papel fundamental para a convivência harmoniosa de uma nação, já que a laicidade do Estado garante sua convivência pacífica”.

Como se vê, um discurso aberto, democrático, em consonância com os anseios que ficaram demonstrados nas ruas. É também neste prisma que o professor Faustino Teixeira percebe o conteúdo do discurso do Papa no Teatro Municipal. “Francisco mostra mais uma vez seu estado de atenção ao ritmo das ruas, às “energias morais” que animam a juventude brasileira em seus protestos em favor de uma sociedade distinta e de uma democracia em tom maior”, ressalta.

Na favela de Varginha, a ênfase de Francisco foi para a solidariedade. “Não se cansem de trabalhar por um mundo mais justo e mais solidário! Ninguém pode permanecer insensível às desigualdades que ainda existem no mundo”. Para Faustino, nessa visita, Francisco foi portador de uma mensagem de esperança em relação aos jovens, uma vez que estes possuem uma “sensibilidade especial frente às injustiças”, e se revoltam diante da corrupção.

Na opinião do diretor do Programa Ciência e Religião da Universidade Candido Mendes, Luiz Alberto Gómez de Souza, a mensagem de Francisco “foi eloquente e firme, com uma roupagem simples e às vezes despretensiosa”. Numa entrevista, ao retornar o tema da globalização da indiferença, já mencionado em Lampedusa, Francisco foi enfático e capturou, na concreticidade do drama humano, as consequências desse sistema perverso: “Hoje em dia há crianças que não têm o que comer no mundo. Crianças que morrem de fome, de desnutrição. Há doentes que não têm acesso a tratamento. Há homens e mulheres que são mendigos de rua e morrem de frio no inverno. Há crianças que não têm educação. Nada disso é notícia… Esse é o drama do humanismo desumano que estamos vivendo. Por isso, é preciso recuperar crianças e jovens, e não cair numa globalização da indiferença”.

Mais uma vez, em conformidade com o clima das manifestações nas ruas brasileiras, Francisco falou sem receio com os jovens: “O jovem que não protesta não me agrada. Porque o jovem tem a ilusão da utopia… O jovem é essencialmente um inconformista. E isso é lindo”. Neste sentido, Souza considera que Francisco “valorizou a ação política dos fiéis no mundo e dos jovens em especial”.

Enfim, o Papa que foi calorosamente acolhido pelas multidões da Jornada Mundial da Juventude, foi para além do caráter festivo do evento e aproveitou a ocasião para deixar um sinal positivo para todos os brasileiros. Deixou a esperança de que novos ventos sopram no mundo eclesial e de que este não deve estar afastado dos problemas que atualmente afligem o mundo.

Junho 2013 não terminou

A história mal começou e as variáveis ainda em jogo são inúmeras. Essa é a constatação de recente mesa-redonda que reuniu os professores José Álvaro Moisés, Jairo Nicolau, Eugênio Bucci e Bruno Torturra cofundador do coletivo Mídia Ninja – Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação.

Os eventos, sobretudo, de junho de 2013 provavelmente irão desaguar na Copa do Mundo 2014 e nas eleições nacionais do mesmo ano.

Junho 2013 verteu-se em inúmeras, milhares de ações reivindicatórias Brasil afora e nas ações dos Black Blocs, reproduzidas pela Mídia Ninja – Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação. Os Black Blocs e a Mídia Ninja, aliás, são protagonistas desse novo movimento.

Nas últimas semanas aumentaram as batalhas de rua em São Paulo e no Rio entre os black blocs e a polícia militar. Os black blocs fazem da ação direta a sua estratégia política e visam atingir sobretudo estruturas físicas do capital e do Estado -  estilhaçam vidraças de bancos e picham e ocupam prédios públicos, símbolos do poder.

De clara inspiração anarquista, os grupos black blocs identificam no Estado e no Capital a violência contra a sociedade. Para os black blocs, a violência está na ação do capital e do Estado e não na ação destrutiva simbólica por eles praticada. A performance destrutiva é uma concepção política, uma ação pedagógica e politizadora para o conjunto da sociedade.

Segundo um dos seus militantes, “nossa sociedade vive permeada por símbolos, e saber usa-los é essencial em qualquer demanda, seja ela política ou cultural. Participar de um Black Bloc é fazer uso desses símbolos para quebrar pré-conceitos e condicionamentos”.

Segundo ele, “as táticas Black Bloc são uma demonstração do poder que já existe nas mãos da população, e esse poder é normalmente desconsiderado pela simples existência das chamadas “vias institucionais”. Quando atuamos com ação direta, queremos também chamar atenção a isso, a essa multiplicidade de caminhos para atender as reivindicações sociais e à ineficiência de se utilizar apenas um, especialmente um que é viciado pelo próprio sistema onde está inserido. Queremos demonstrar que política também se faz com as próprias mãos”.

A Mídia Ninja – Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação é outro sujeito político que ganhou expressão com as manifestações de junho de 2013. Em entrevista ao IHU, Fábio Malini, pesquisador da Universidade do Espírito Santo, a Mídia Ninja ganhou popularidade ao divulgar informações das manifestações em tempo real. A grande novidade, diz ele, é a sua potência de transformar o invisível em visível: “Essa é uma relação invisível, que gera uma potência da invisibilidade fantástica: a pessoa produz um vídeo de um protesto em Vitória, posta na rede via inbox, e envia para a Mídia Ninja publicá-lo, ou seja, conectar a invisibilidade com a visibilidade”. Ressalte-se, entretanto, que polêmicas envolvem a Mídia Ninja.

Elites ouvirão o ‘estrondo das ruas?

A potência das ruas vistas nas grandes manifestações de junho de 2013 e na visita do papa sinaliza para novos ventos para a conjuntura brasileira e quem sabe latino-americana?

Tudo indica que sim, mas não necessariamente, como se tem visto no debate da Reforma Política – bandeira levantada pelas ruas e que usurpada pelas elites econômicas e políticas pode ser devolvida com um arremedo de reforma eleitoral, sequer com participação popular, no máximo com um referendum viciado.

Como destaca Eugêncio Bucci, “o relógio dos protestos não se acerta com o relógio do poder. A gramática das ruas não cabe nos dicionários dos palácios. Sejam quais forem os conteúdos, vem desse desacerto o grande estrondo”.

Uma releitura de muitas das Conjunturas da Semana indicam o desacerto dos ponteiros entre o poder e as demandas das ruas. Resta saber se as elites políticas e econômicas terão interesse e vontade política em corrigir os seus ponteiros e acertá-los com os ponteiros das ruas.

Fonte: EcoDebate

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