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sexta-feira, 18 de outubro de 2013

O Brasil na contramão da soberania alimentar

Apesar de os agricultores familiares e os pequenos camponeses serem responsáveis por 70% da produção alimentícia brasileira, “o processo de comercialização da produção é controlado por grandes redes varejistas: Carrefour, Walmart e Pão de Açúcar controlam 80% da circulação de alimentos; são elas que definem os preços dos produtos”, informa Raul Klauser à IHU On-Line, em entrevista concedida por telefone na manhã do Dia Mundial da Alimentação, durante a Jornada Nacional de Lutas por Soberania Alimentar, organizada pelo MPA.


No que se refere à produção de grãos no país, Klauser assinala que “as mesmas empresas que controlam a oferta e comercialização da soja, do milho, produzem os agrotóxicos, os transgênicos, o modelo tecnológico, gerando um controle em torno dos alimentos”.

Na entrevista a seguir, ele comenta as políticas públicas destinadas à agricultura familiar e enfatiza que o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar – PRONAF, a maior política pública destinada ao setor, “não corresponde à necessidade” dos agricultores. E dispara: “Considerando o universo de oito milhões de famílias camponesas, somente cerca de um milhão tem acesso ao programa. Há uma massa excluída, porque a lógica do crédito rural não segue a lógica da agricultura camponesa”.

Raul Klauser pontua ainda que o Movimento dos Pequenos Agricultores vê com preocupação o aumento do preço dos alimentos, que é recorrente nos últimos anos. “Há inflação no preço dos alimentos, e, se não mudarmos a estrutura de produção, o preço irá aumentar ainda mais, refletindo diretamente na capacidade da população de se alimentar. Isso pode refletir em uma piora no sentido de não atender aos Objetivos do Milênio” [1], adverte.

Sobre o tema, o IHU irá promover, no próximo ano, o XV Simpósio Internacional IHU – Alimento e Nutrição no contexto dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio.

Raulo Klauser é coordenador nacional do Movimento dos Pequenos Agricultores – MPA.
Confira a entrevista.

IHU On-Line - Em que consiste a iniciativa da Jornada Nacional de Lutas por Soberania Alimentar?
Raul Klauser – Ontem, dia 16 de novembro, foi o Dia Mundial da Alimentação e diversas organizações fizeram manifestações para discutir por que o Estado brasileiro tem privilegiado as políticas públicas que favorecem a produção e exportação do agronegócio em detrimento da agricultura camponesa. Em consequência dessa política, houve inflação no preço dos alimentos, as áreas de cultivo de feijão e mandioca estão sendo reduzidas, ao passo que aumentam as áreas cultivadas de cana-de-açúcar e eucalipto. Estamos assistindo, no país, à elaboração de uma série de políticas que incentivam a monocultura, a exportação de grãos, e isso afeta diretamente a questão da alimentação do povo brasileiro. Junto a isso, há as implicações do modelo tecnológico, baseado na produção química, com uso de agrotóxicos — o Brasil, nos últimos quatro anos, já é considerado o maior consumidor de agrotóxicos do mundo. Além disso, há um ano e três meses não é decretada nenhuma área para a reforma agrária no país. Então, nesse sentido, a Jornada Nacional de Lutas pela Soberania Alimentar quer demonstrar que o caminho que o Brasil está seguindo não é o de produzir alimentos, mas de produzir fome. O país pode até produzir dólares, mas não produz alimento para a população, o que está completamente na contramão da soberania alimentar.

IHU On-Line - Como avalia o processo de produção e distribuição de alimentos no Brasil? Qual tem sido a participação dos camponeses e pequenos agricultores nesse processo?

Raul Klauser – Os dados do último censo agropecuário realizado pelo IBGE demonstram que 70% da produção de alimentos é realizada pelos camponeses. Então, eles efetivamente produzem os alimentos. Entretanto, o processo de comercialização da produção é controlado por grandes redes varejistas: Carrefour, Walmart e Pão de Açúcar controlam 80% da circulação de alimentos; são elas que definem os preços dos produtos. Essa é uma situação complicada, porque, no caso dos grãos, as mesmas empresas que controlam a oferta e comercialização da soja, do milho, produzem os agrotóxicos, os transgênicos, o modelo tecnológico, gerando um controle em torno dos alimentos. Então, os camponeses de fato produzem, mas não controlam a produção.

IHU On-Line – Os pequenos agricultores reivindicam mais espaço no mercado?
Raul Klauser – Veja bem, o Brasil tem uma das estruturas fundiárias mais desiguais do mundo, então, pensar em uma política séria e efetiva para distribuir alimentos sem pensar a reforma agrária é impossível. Temos de discutir a reforma agrária e esse é um ponto de que nenhum movimento social abre mão. Hoje existem cerca de quatro milhões de estabelecimentos de agricultura familiar, os quais precisam ter incentivo econômico para a produção. É preciso políticas que tratem da questão sanitária, da legislação ambiental, da questão do crédito, da tecnologia, da mecanização da agroecologia, que são instrumentos para ampliar a produção de alimentos nas áreas que os camponeses já plantam.

IHU On-Line - Quais são hoje as principais políticas públicas de incentivo aos pequenos produtores e como implicam na produção de alimentos?

Raul Klauser – A principal política do Estado brasileiro é o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar – PRONAF, mas, considerando o universo de oito milhões de famílias camponesas, somente cerca de um milhão tem acesso ao programa. Há uma massa excluída, porque a lógica do crédito rural não segue a lógica da agricultura camponesa. Portanto, o sistema de crédito oferecido não corresponde à necessidade.
Também são políticas importantes o Programa de Aquisição de Alimentos – PAA e o Programa Nacional da Alimentação Escolar – PNAE. Em relação a este último, a dificuldade que nós, camponeses, enfrentamos é com os produtos processados em relação à legislação sanitária, a qual é altamente restritiva, não tem foco na equidade e na qualidade dos alimentos, mas funciona como uma barreira de mercado para impedir a comercialização de alimentos das pequenas agroindústrias e viabilizar somente as grandes. Então, para que o PNAE se torne mais efetivo, é preciso mexer na legislação sanitária.

IHU On-Line – E a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica – PNAPO?

Raul Klauser – Nós participamos do processo de construção dessa política, mas até agora ela ainda não foi efetivada. É uma política bem estruturada, mas a nossa dúvida é em relação à escala que essa política terá. Ela irá atender 10, 15 mil agricultores, ou oito milhões de famílias e estabelecimentos agropecuários? Tem de ser uma política massiva, e não uma política de experiência para algumas localidades.

IHU On-Line - Que aspectos podem pôr em risco a soberania alimentar no Brasil?

Raul Klauser – A diminuição das áreas de produção de alimento e o aumento das áreas de produção de cana-de-açúcar e soja são um problema grave. Um aspecto é a expansão dos transgênicos de forma indiscriminada — este ano mais de 67 milhões de hectares foram cultivados com transgênicos. Também está em curso a resistência de transgênicos ao herbicida 2,4-D, que é o agente laranja usado na guerra do Vietnã. O controle do mercado pelas multinacionais é outro aspecto complicado, porque elas passam a determinar o preço dos alimentos e, portanto, isso representa um risco gravíssimo para os agricultores. Esses são os principais elementos que põem em risco a soberania alimentar no país.

IHU On-Line - Qual é a participação de empresas estrangeiras no processo de vendas de terras destinadas à produção de alimentos?

Raul Klauser – Não tenho esses dados no momento, mas a questão fundamental é que a forma como o Estado brasileiro tem conduzido a questão da agricultura no país está entregando o território para as multinacionais de forma direta e indireta. Direta no que se refere à compra de terras brasileiras pelas empresas e indireta pela aquisição de ações em empresas nacionais. Esse processo não seria permitido em nenhum país desenvolvido. 
Nossa reivindicação é de que seja vedada a aquisição de terras por estrangeiros e que o governo federal tenha mecanismos efetivos de controlar isso.

IHU On-Line - Quais são os problemas econômicos que afligem o Nordeste e implicam diretamente na produção de alimentos?

Raul Klauser – As políticas públicas aplicadas no Nordeste sempre tiveram como objetivo combater a seca. 
Considerando a questão climática da região, seria o mesmo que, na Europa, ter políticas públicas de combate à neve. Políticas de combate à seca não resolvem a questão alimentícia do Nordeste; tem de ter política de convivência com o semiárido. Então, essa compreensão equivocada acerca do Nordeste foi o primeiro fator que limitou o desenvolvimento de novas ações.
Outro equívoco na região é a transposição do Rio São Francisco. Trata-se de uma obra gigantesca, milionária, mas que não terá o objetivo de produzir alimentos para o povo. Pelo contrário, a obra irá favorecer a produção de camarão, a fruticultura de exportação, cana-de-açúcar irrigada, etc. Prova disso é a área de 20 mil hectares da Monsanto, localizada em um perímetro irrigado, para fazer experimentos com transgênicos, enquanto o povo não tem arroz, não tem feijão para comer.
Outro problema histórico é o acesso à água da cisterna. Esta é uma política que necessita ser universalizada em todo o Nordeste. O governo preferiu investir nas cisternas de polietileno, mas elas não se adaptam à realidade, porque não resistem ao calor do sol. Elas esquentam e liberam toxinas na água.
Em períodos de safra boa, sempre há o problema do preço a cobrar pelos alimentos. Então, é preciso uma política de comercialização para garantir a renda dos agricultores nos momentos bons. A questão do acesso à terra, a regularização dos territórios Ribeirinhos, dos Quilombos, é outra demanda. Muitas comunidades tradicionais estão sendo ameaçadas por grandes empreendimentos, principalmente as que vivem nas margens do Rio São Francisco. Regularizar esses territórios é uma questão fundamental.

IHU On-Line - Qual é o cenário brasileiro em relação à alimentação e à nutrição, considerando os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio de erradicar a fome?

Raul Klauser – Houve avanços consideráveis no Brasil, mas não são mudanças estruturantes, porque as políticas de transferências de renda, o Programa Bolsa Família, etc., são políticas compensatórias, as quais não mudam efetivamente a estrutura de produção e a estrutura econômica do país. Para mudar a estrutura econômica do país, é preciso distribuir terra para quem não tem terra, é preciso acabar com essa possibilidade de os estrangeiros comprarem terras no Brasil, é preciso limitar os monocultivos, limitar a grande produção de agrocombustíveis. 

Esses seriam caminhos estruturais.

Vemos com muita preocupação o aumento do preço dos alimentos, como ocorreu no início deste ano. Há inflação no preço dos alimentos, e, se não mudarmos a estrutura de produção, o preço irá aumentar ainda mais, refletindo diretamente na capacidade da população de se alimentar. Isso pode refletir em uma piora no sentido de não atender aos Objetivos do Milênio.

Outra questão gravíssima é a qualidade dos alimentos, uma vez que eles estão sendo envenenados. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa tem publicado os relatórios do programa de análise de agrotóxicos nos alimentos, e a quantidade de alimentos fora dos padrões mínimos é muito grande. Então, isso reverte em problemas de saúde pública: já foram registrados um milhão de novos casos de câncer por ano, segundo o Instituto Nacional do Câncer, além de várias doenças ligadas à questão gastrointestinal, que é resultado direto de uma alimentação contaminada com produtos químicos. A questão do alimento não é uma preocupação só da população do campo, tem de ser uma preocupação de toda a sociedade, que deve decidir qual tipo de alimento quer comer.

NOTA:
[1] Objetivos de Desenvolvimento do Milênio – ODM surgem da Declaração do Milênio das Nações Unidas, adotada pelos 191 estados membros no dia 8 de setembro de 2000. Criada em um esforço para sintetizar acordos internacionais alcançados em várias cúpulas mundiais ao longo dos anos 90 (sobre meio-ambiente e desenvolvimento, direitos das mulheres, desenvolvimento social, racismo, etc.), a Declaração traz uma série de compromissos concretos que, se cumpridos nos prazos fixados, segundo os indicadores quantitativos que os acompanham, deverão melhorar o destino da humanidade neste século.
Acabar com a extrema pobreza e a fome, promover a igualdade entre os sexos, erradicar doenças que matam milhões e fomentar novas bases para o desenvolvimento sustentável dos povos são alguns dos oito objetivos da ONU apresentados na Declaração do Milênio, e que se pretendem alcançar até 2015.

Fonte: Mercado Ético

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