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sexta-feira, 4 de outubro de 2013
Pesquisadores levam raios para a tela do cinema
O funcionário aposentado do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) José Vicente Moreira voltava do trabalho para casa de bicicleta, em uma tarde chuvosa em São José dos Campos, no início dos anos 1990, quando um raio caiu sobre uma árvore. Em seguida, o raio atingiu uma cerca elétrica e, depois, foi na direção de Moreira, partindo a bicicleta ao meio e o arremessando a uns dez metros de distância.
Moreira ganhou com o acidente não apenas pinos e placas de metal em uma das pernas – onde diz sentir dor em dias frios –, mas duas filhas e um neto, resultados do casamento com a mulher que o socorreu, que ele chama carinhosamente de “os descendentes do raio”.
Moreira é um dos personagens reais que tiveram suas vidas transformadas por descargas elétricas e estão retratados no filme Fragmentos de paixão, que tem estreia prevista para o dia 11 de outubro nos cinemas da rede Cinemark nas cidades de São Paulo, São José dos Campos, Rio de Janeiro, Porto Alegre (RJ) e Manaus (AM).
Produzido pelo Grupo de Eletricidade Atmosférica (Elat) do Inpe, o filme conta com imagens de raios capturadas por meio de câmeras de alta velocidade – capazes de registrar até 4 mil quadros (frames) por segundo –, utilizadas em um Projeto Temático apoiado pela FAPESP. É o primeiro longa-metragem brasileiro sobre o fenômeno meteorológico.
“Existem alguns documentários sobre raios produzidos em países como os Estados Unidos, mas ainda não havia nenhum feito no Brasil, que é o campeão mundial de ocorrência desse fenômeno”, disse a diretora e roteirista do filme, a jornalista Iara Cardoso, à Agência FAPESP.
“As produções feitas sobre o tema são muito técnicas e voltadas, praticamente, para os próprios pares [pesquisadores especialistas no tema]. Por isso, decidimos fazer um filme diferente desse formato, no qual os raios fossem retratados de uma forma compreensível pelo público geral”, disse Cardoso.
Para realizar o filme, Cardoso e o coordenador do Elat, o pesquisador Osmar Pinto Junior, fizeram um levantamento, ao longo de três anos, de referências sobre a história dos raios no Brasil em bibliotecas em São Paulo, no Rio de Janeiro e no exterior.
A partir da pesquisa histórica feita com mais de 200 fontes – entre livros, registros científicos, relatos de descendentes de personalidades e documentos históricos –, Cardoso escreveu o roteiro do filme, que apresenta o fenômeno sob uma perspectiva científica, cultural e histórica.
“Não havia praticamente nada de historiografia sobre raios no Brasil. Fizemos o levantamento a partir do zero e, no futuro, a ideia é publicar um livro sobre o material que reunimos para preservá-lo”, contou Cardoso, que é filha de Pinto Junior.
Uma das constatações da pesquisa histórica foi que o primeiro registro fotográfico de raio no país é de Henrique Charles Morize (1860-1930), feito em 9 de novembro de 1885, no alto do então Morro do Castelo, no Rio de Janeiro, onde está situado hoje o aeroporto Santos Dumont.
Pesquisador e posteriormente diretor do Observatório Nacional do Rio de Janeiro, o cientista francês, radicado no Brasil, também foi o primeiro a descrever corpos opacos no interior de um organismo vivo por meio do uso de raios X em uma tese, apresentada em 1898, em um concurso para a cátedra de Física Experimental na Escola Politécnica do Rio de Janeiro.
Outra participação importante de Morize na história da ciência brasileira foi a observação, em 29 de maio de 1919, do eclipse total do Sol, na cidade de Sobral, no interior do Ceará, quando foram obtidas as maiores provas do “efeito Einstein” – como era denominada a deflexão da luz pela gravidade. O próprio Albert Einstein, em uma visita a Morize no Observatório Nacional em 9 de maio de 1925, reconheceu a importância do estudo feito em Sobral.
“Eu não tive a oportunidade de conhecê-lo, mas os familiares que conviveram com ele relatam que era um cientista por excelência e um homem muito curioso”, diz, no filme, Henrique Carlos Morize, engenheiro eletricista e bisneto do cientista franco-brasileiro.
Antes de Morize ter registrado pela primeira vez o fenômeno em imagem, contudo, já havia relatos textuais sobre raios no Brasil desde a descoberta do país, em 1500, narra o filme.
Séculos mais tarde, em 1839, Charles Darwin descreveu em A viagem do Beagle as impressões sobre a primeira tempestade tropical que vivenciou em Salvador, em 1832, durante sua passagem pela capital da Bahia a bordo do navio HMS Beagle, para uma segunda expedição de levantamento topográfico na América do Sul.
“À noite, do convés, presenciei um espetáculo extraordinário. A escuridão da noite era interrompida por raios muito luminosos”, escreveu Darwin em uma das passagens do diário da viagem, transcrita no filme.
Pesquisa sobre raio
De acordo com os autores do filme, só passados mais de 200 anos das primeiras observações de raios feitas no Brasil, no entanto, é que o fenômeno começou a ser estudado cientificamente no século 18 por cientistas como o norte-americano Benjamin Franklin (1706-1790).
No Brasil, os primeiros estudos sobre raios foram feitos por pesquisadores do Observatório Nacional do Rio de Janeiro, que interrompeu as pesquisas sobre o tema. A lacuna na pesquisa foi preenchida com a criação do Elat do Inpe, em 1995, que se tornou referência mundial em estudos sobre raios, destaca o filme.
Alguns dos resultados de estudos realizados por pesquisadores do Elat – muitos dos quais com apoio da FAPESP – foram a constatação de que, por ano, caem cerca de 50 milhões de raios no Brasil e aproximadamente 500 pessoas são atingidas – em média, 130 são vítimas fatais.
Um dos casos célebres de vítimas fatais de raios no Brasil, relatado no filme, é o de Cecília de Assis Brasil (1916-1928). Filha de Joaquim Francisco de Assis Brasil (1857-1938), ministro da Agricultura no primeiro governo de Getúlio Vargas (1882-1954), Cecília morreu ao ser atingida por um raio, em cima de um cavalo, durante uma cavalgada.
Segundo os relatos, Cecília foi atingida por um raio de final de tempestade – quando o temporal já havia cessado. De acordo com Pinto Junior, esse tipo de raio costuma ser mais intenso do que as descargas elétricas que ocorrem durante as chuvas.
“Muitas pessoas morrem atingidas por raio no Brasil nessa circunstância [ao sair do lugar em que estavam abrigadas passada a tempestade, quando são atingidas por descargas elétricas mais intensas no final de temporais]”, ressalta o pesquisador no filme.
Para estimar quantas pessoas morrem atingidas por ano no Brasil e as circunstâncias das mortes, os pesquisadores do Elat realizaram um estudo com base em dados coletados pelo Ministério da Saúde, pela Defesa Civil, pelo próprio Inpe e por reportagens publicadas na imprensa brasileira no período de 2000 a 2009 sobre vítimas fatais de descargas elétricas no país.
O estudo revelou que, nesse período, foram registrados 1.321 casos de vítimas fatais de raios no Brasil – o que representa uma média de 132 casos por ano. Do total de vítimas, 81% eram do sexo masculino e 19% do sexo feminino.
A região Sudeste apresentou o maior número de mortes – representando 29% dos casos –, seguida pelas regiões Central (com 19%), Norte e Nordeste (com 18% cada) e Sul (com 17%) do país.
O estudo foi publicado em janeiro de 2013 na revista Atmospheric Research. Além de embasar o roteiro do filme, a pesquisa também resultou em uma cartilha educativa sobre como se proteger contra os raios, que o Elat está preparando, contou Cardoso.
“As estimativas sobre o número de pessoas atingidas e de vítimas fatais de raios no Brasil eram totalmente baseadas em dados internacionais”, afirmou.
“O estudo permitiu termos os números nacionais e detalharmos cada vez mais as circunstâncias das mortes por raios no Brasil. Com isso, será possível também indicar com maior precisão o que deve ser feito no país para as pessoas se protegerem dos raios”, avaliou Cardoso.
Campeão de descargas
As pesquisas sobre raios no Brasil nas últimas décadas também revelaram que o Amazonas é o estado campeão em incidência de raios no país – com, em média, 11 milhões por ano – e derrubaram alguns mitos sobre o fenômeno, destaca o filme.
Um desses mitos era de que um raio não cai duas vezes no mesmo lugar. “As marcas de raios no Cristo Redentor, no Rio de Janeiro, derrubam essa tese”, diz Pinto Junior no filme.
O longa também chama a atenção para o fato de que, com as mudanças climáticas globais, os raios tenderão a ocorrer com maior frequência no país nos próximos anos e setores como o de distribuição de energia e de aviação deverão se preparar cada vez mais para se proteger de seus possíveis impactos.
O artigo Lightning casualty demographics in Brazil and their implications for safety rules (doi: 10.1016/j.atmosres.2012.12.006), de Iara Cardoso e outros, pode ser lido na revista Atmospheric Research em www.sciencedirect.com/science/article/pii/S016980951200436X.
Fonte: Fapesp
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