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terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Seja bem-vindo à era da escassez

Pode ser que os leitores acabem antes do livro impresso. O Orkut, a Petrobras, o futebol brasileiro, a vida como a gente conhecia não existem mais. E os picolés? Viraram paletas mexicanas vendidas em food trucks


Você sabe da última? Entramos na era da escassez. O mundo agora é assim. Está cada vez mais comum se falar na última. A última gota, ponta, semente, vez que você viu uma estrela no céu na cidade de São Paulo. Quando foi mesmo?

A água pode acabar. Existe gente que jura que dá para ficar sem tomar banho. Mas uma pessoa de bem, um pai de família, uma mãe de criança, empresária, conseguiria viver sem chocolate? Difícil. E o pior: a produção de cacau não tem dado conta para tantos dedos querendo se lambuzar com bombons, tabletes, cremes.

Onde estão os picolés? Saudades das velhas Kombi que vendiam cachorro-quente. Raridade. Nas festas do interior, as barraquinhas ofereciam pinga, marvada, imaculada, branquinha, bagaceira, a-que-matou-o-guarda.

Hoje a cachaça só entra se tiver nome bonito, aliás qualquer coisa só entra desse modo. O sujeito não sai de casa se não for para conhecer um espaço diferenciado. E, em vez de enfiar o pé na jaca, mergulha os calcanhares no leito de rúculas ao molho de iogurte, oréganos frescos e damascos da Polinésia. É o pé na jaca gourmet, com o perdão da cacofonia.

O Orkut acabou; a Petrobras, dizem. Os ascensoristas não estão mais dentro dos elevadores, substituídos por vozes mecânicas. O Eike deixou a lista dos bilionários. E nem Clarice Lispector teve um repertório tão vasto de frases para as redes sociais, da forma que querem fazer você acreditar.

O livro impresso vai acabar algum dia? Pode ser que os leitores acabem antes do livro. O mundo politeísta assistiu ao nascer do monoteísmo, até que se declarou Deus morto, ou, quem sabe, ele nunca tenha existido.

A crônica esportiva procura entender por que o nosso futebol acabou. A extinção da paixão pela camisa, do improviso do craque brasileiro. Os analistas do mercado querem descobrir por que a economia desaqueceu. O PIB sumiu. A arara-azul e o mico-leão-dourado faz muito também não aparecem por essas bandas.

A vida como a gente conhecia não existe mais. Ficou nas fotografias, que de uns tempos para cá não desbotam. Permanecem coloridas e vivas, como se o momento registrado tivesse acabado ontem ou uma hora atrás. O clima mudou, as geleiras estão derretendo, os rios estão secando. Pode faltar luz nos próximos meses.

Acabou o dinheiro – o meu, pelo menos. A paciência da população, a vergonha dos políticos, a revolta junina, o espaço para tanto silicone, o carnaval de outrora, o amor.

O amor acabou sem nem avisar com antecedência. Um dia o homem acordou, pulou da cama e disse a ela: não dá mais. Logo os dois, que tinham amado Paris, amado Veneza, amado a primeira vez que fumaram maconha, amado aquele filme do Woody Allen. Amaram tanto tudo que faltou amor para continuarem a se amar.

E não aconteceu só com eles. Falta de amor se espalha que nem gripe. Atchim! Beija-se sem amor, casa-se sem amor, transa-se sem amor. E os pais não veem a hora de devolver as crianças, tomarem de volta o pagamento do parto. Chega-se a uma certa idade que a gente não tem mais saúde.

Acabou a atenção. Pessoas andam pela rua batendo a testa, trombando em postes. Olha o celular, digita, esquece a vida. Um exército de seres que estão aqui, mas não estão em lugar algum. Cabeças perdidas em bate-papos, jogos, vídeos de sexo, piadas, notícias. Onde estará de verdade toda essa gente?

Talvez seja por isso que se fale cada vez mais em encontrar outros planetas, galáxias, estrelas. O dia não veio, o bonde não veio, o riso não veio, não veio a utopia e tudo acabou e tudo fugiu e tudo mofou, e agora, José? Esse planeta acabou, ou está acabando, anote aí, antes que acabe a tinta da caneta, ou a bateria do seu computador.

Uma sonda acabou de pousar em um cometa pela primeira vez, a Nasa anuncia para os próximos anos uma missão tripulada inédita para Marte. Candidato, seu tempo acabou. A lei acabou no Brasil, acabou a promoção no shopping, na 25 de Março, na Rua da Alfândega. Acabou a privacidade, o Calendário Maia. Acabou o coletivo, agora cada um só quer saber de si.

Não tem mais o que acabar por esses lados, vamos acabar com o que a gente ainda nem conhece direito. O que pode ser destruído na Lua? Em Júpiter? Saturno ainda perde seu anel em um assalto interestelar. Enquanto houver esse texto é possível ter a garantia de que algo continua, a esperança, mas nem isso. Acabou a linha, acabou o espaço, acabou o texto. Fim.

* Eduardo Shor é jornalista e autor do livro Amor do Mundo.

Fonte: Envolverde

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