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segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

A vida entre as duas abóbadas, artigo de Washington Novaes

Segundo o noticiário, termina amanhã o prazo concedido por instituições ruralistas ao Ministério da Justiça para que o governo federal solucione os “conflitos fundiários” que envolvem terras ou reivindicações indígenas. Já em carta aberta à presidente da República, organizações indígenas pedem nada menos que intervenção federal em Mato Grosso do Sul para solucionar esses mesmos conflitos – uma “situação urgente e gravíssima” (Instituto Sócio-Ambiental, 22/11). Trata-se, diz a carta, de uma “tragédia anunciada”, pois os fazendeiros partiriam para o confronto, em que haveria “derramamento de sangue”, conforme anunciado por um dirigente da Associação de Criadores do Estado.


É inacreditável que se chegue aí e que o governo federal anuncie, como fórmula para evitar conflitos, a criação de um “programa com recursos do Orçamento da União” para a “aquisição de novas terras indígenas ou indenizar proprietários rurais pela expropriação de áreas demarcadas” (Valor, 23/11). E isso um quarto de século depois de promulgada a Constituição de 1988 – que definiu os direitos das etnias indígenas. Agora com o governo dizendo que vai “reformular” as regras para demarcação de terras indígenas, embora incorporando ao processo outras instituições. Não bastasse, há uma proposta de emenda constitucional em tramitação no Congresso que atribuiria ao próprio Legislativo o poder de demarcação.

Claude Lévi-Strauss, que se apaixonou pelo tema ao viver entre nossos índios, com certeza ficaria perplexo diante de um quadro como esse. Pois lembrava que os indígenas, que eram milhões e donos de todas as terras, não mataram as centenas de portugueses recém-chegados porque não quiseram; receberam-nos com todas as honras, porque sua visão de mundo os fazia crer que “o outro sempre chega”; por isso, o limite da liberdade de cada pessoa está no direito do outro. Custou-lhes a vida essa forma de ver o mundo. E continua custando.

Nos 30 anos em que o autor destas linhas escreve sobre os índios guaranis-caiovás em Mato Grosso do Sul (que se matam porque não lhes deixaram terra suficiente para viver de acordo com sua cultura), a cada ano são muitas dezenas de suicídios entre eles: 34 vezes mais que a média nacional, segundo a Survival International (18/10). Um suicídio a cada semana desde 2000, a imensa maioria de jovens de 15 a 29 anos, o mais jovem com apenas 9 anos de idade (Adital, 19/10). Já era assim há três décadas, quando um jovem de 18 anos se enforcou numa árvore no dia seguinte ao do seu casamento. E deixou escrito no chão, sob seus pés: “Eu não tenho lugar”.

Em muitos lugares ainda é assim – embora no julgamento da demarcação de terras em Roraima, nos mais altos tribunais, o constitucionalista José Afonso da Silva, em parecer brilhante, tenha demonstrado, e para aí conduzido o julgamento, que os direitos dos indígenas a suas terras são reconhecidos desde as Ordenações Manuelinas do século 17, que nos regeram e foram seguidas pelas ordenações e constituições posteriores. Mas hoje, segundo o Censo de 2010, existem apenas 896 mil índios de 305 povos no nosso território. E 98,47% estão na Amazônia, onde, conforme relatórios internacionais, inclusive do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), seu modo de viver – mais que reservas ecológicas ou parques nacionais – é o mais adequado para a conservação da biodiversidade.

Pois com tudo isso, agora vamos ter grupos de trabalho para dizer a quem pertencem as terras; e recursos federais para pagar a quem nelas entrou, para que saia. E se tenta mudar a legislação, até derrubando cláusulas pétreas da Constituição, como enfatiza texto dos bispos Erwin Kräutler, presidente do Conselho Indigenista Missionário, e Enemésio Lazzaris, presidente da Comissão Pastoral da Terra. Eles também se referem a conflitos em Mato Grosso do Sul, onde terras dos índios cadiuéus, “demarcadas há 100 anos e homologadas há quase 40, continuam invadidas”. Não por acaso, nesse Estado ocorreram, entre 2000 e 2012, nada menos que 317 assentamentos nessas terras, algumas delas com “títulos de propriedade do Estado”. Será que ainda voltaremos aos anos 1980, quando a índia Tuíra encostou um facão no pescoço de um diretor da Eletronorte, indignada com discussão sobre o licenciamento de uma hidrelétrica? Será que ainda vamos ouvir o experiente Marcos Terena repetir: “Vocês, brancos, são uma cultura que não deu certo”?

Seja como for, a cada dia mais se fala da nossa “crise civilizatória”, da inadequação dos nossos modos de viver às possibilidades do planeta. Ouviremos os “índios”? Ailton Krenak, que se tornou conhecido quando, no plenário do Congresso Nacional, pintou o rosto de preto para protestar contra ameaças no projeto da Constituinte de 1988, hoje diz (Ecológico, setembro de 2013) que “estamos caminhando para um desastre comum, porque não conseguimos mais nos reconhecer uns aos outros”. Lembra ele: “Só somos índios para os outros. Para nenhum de nossas famílias nós somos os índios (…). Nós nos reconhecemos como seres humanos e talvez a crise de civilização que vivemos seja um grande liquidificador para que todas essas alcunhas generalistas – os amarelos, os índios, os brancos, os pretos – se dissolvam neste caldeirão, para que aprendamos, de novo, a ser a velha e ótima humanidade”.

Se não for assim, Ailton Krenak nos recontará o mito indígena que diz ter o mundo sido criado sob a forma de uma esfera dividida ao meio em duas abóbadas, uma assentada sobre o chão e voltada para o alto, a outra em cima, voltada para baixo; e, entre elas, segurando a superior, nasceram os indígenas. “Se eles desaparecerem, a abóbada de cima cairá sobre a de baixo e tudo esmagará”, ensina Krenak.

Linguagem mitológica, claro. Mas não custa lembrar a insustentabilidade dos nossos modos de viver.

*Washington Novaes é jornalista. E-mail: wlrnovaes@uol.com.br

Fonte: EcoDebate

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