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quinta-feira, 7 de agosto de 2014

A solidão das metrópoles e o sertão revisitado

O homem das multidões, de Cao Guimarães e Marcelo Gomes, é inspirado vaga e longinquamente no conto homônimo de Edgar Allan Poe (1809-49) sobre o sujeito que parecia só ganhar existência no meio da massa anônima da metrópole.

Das poucas páginas do conto aos 95 minutos do filme há mudanças, acréscimos e inversões que talvez valha a pena examinar para entender os propósitos dos dois cineastas e algumas diferenças entre literatura e cinema.



m primeiro lugar, a localização espaço-temporal indistinta da narrativa literária ganha na tela nitidez e precisão: estamos em Belo Horizonte nos dias de hoje. Também o protagonista, de quem nada sabemos ao ler o conto, recebe aqui um perfil definido: encarnado pelo ator Paulo André, do grupo Galpão, ele é um condutor de trens do metrô belo-horizontino. Está na faixa dos 40 e mora sozinho numa sala comercial improvisada em apartamento.

O acréscimo mais relevante, em termos de personagens, é o de uma colega de trabalho do protagonista (Silvia Lourenço), supervisora com quem ele almoça às vezes e que mora com o pai idoso (Jean-Claude Bernardet).

Mas chega de falar do enredo. O importante é o modo como os dois experientes e talentosos diretores encenam a solidão do personagem-título, sua relação com a cidade e o mundo. Antes de mais nada, uma decisão formal que salta aos olhos, criando um certo incômodo: o formato do quadro não é horizontal, como na quase totalidade dos filmes, mas sim vertical. O estranhamento é tamanho que alguns projecionistas chegaram a suspeitar de um defeito técnico.

Essa verticalização da imagem tem, por um lado, o efeito de comprimir opressivamente o espaço por onde trafegam os indivíduos, e isso é reforçado pela presença constante de trilhos de metrô, escadas rolantes, ruas estreitas, corredores de camelódromos. Por outro lado, serve para sublinhar a dificuldade do protagonista em estabelecer relações humanas horizontais, em estender-se para o outro.

Quando o condutor de trens está entre outras pessoas, estas geralmente estão fora de foco, como uma massa indefinida e sem rosto. Quando ele, dirigindo o trem, passa por elas nas plataformas, elas se tornam borrões coloridos, em belas imagens que remetem ao expressionismo abstrato.

O desconforto do vazio

A opção pelo quadro vertical reforça o desconforto do encontro entre o protagonista e sua colega supervisora no despojado e desleixado apartamento dele. Ali, tudo é horizontal: o alongado cômodo quase deserto que serve de quarto, sala e cozinha; o sofá; a varanda externa; a vidraça que dá para a cidade. Um espaço que, seccionado em enquadramentos verticais, ainda que não haja cortes e o movimento da câmera seja contínuo, acentua a distância entre os personagens, realça o vazio.

Hoje em dia se diria que o protagonista é uma espécie de autista. Mas não é bem assim. Ele não está alheio ao mundo. Almoça ocasionalmente com a colega, serve até de padrinho em seu casamento, faz ginástica na varanda do apartamento, transa com uma prostituta.

Entra aqui uma mudança crucial com relação ao conto de Poe: no texto, o personagem procura a multidão com avidez, quase com sofreguidão, como um viciado busca sua droga. No filme, ao contrário, ele parece agir por inércia, com uma serenidade passiva. Talvez se trate de uma diferença entre duas épocas. Hoje não há mais lugar para o fascínio e a excitação que o burburinho da metrópole podia ocasionar no tempo de Poe. Deixamo-nos levar pela massa anônima, nada mais.

No filme, a multidão alimenta o protagonista, mas ele é capaz de sobreviver sem ela. Às vezes basta a aproximação com um único ser, como na cena em que, no ônibus quase vazio, ele vai se sentar justamente ao lado do único passageiro. Um momento de belo e discreto absurdo, um lirismo áspero que dá o tom desse filme estranho, único, fascinante, cujo parente mais próximo, no cinema brasileiro, talvez seja Transeunte (2010), de Eryk Rocha.

História da eternidade

O grande vencedor do recente Festival de Paulínia, A história da eternidade, de Camilo Cavalcante, atualiza de modo vigoroso e original alguns temas recorrentes na filmografia do sertão. Num vilarejo da caatinga, articulam-se três dramas distintos, com personagens arquetípicos da região.



Há o pai autoritário e tirânico (Claudio Jaborandy) da adolescente romântica (Debora Ingrid) que sonha com o mar e é apaixonada pelo tio artista (Irandhir Santos); há o sanfoneiro cego (Leonardo França) que corteja a solteirona solitária (Marcélia Cartaxo); e há, por fim, a avó (Zezita Matos) alvoroçada pela chegada do neto (Maxwell Nascimento) que veio da cidade grande com cabelo tingido, brincos e uma história mal contada.

O recifense Cavalcante, estreante em longa, mas experiente realizador de curtas, mostra segurança, desenvoltura e estilo na condução dessas tensões entrelaçadas, que explodem justamente quando a aguardada chuva chega ao vilarejo. Os grandes planos gerais e os movimentos discretos de câmera expõem um mundo agreste, parado no tempo, que parece pré-existir ao homem e dele prescindir. O controle absoluto da imagem em tela larga pelo diretor de fotografia Beto Martins esculpe o espaço e constrói o drama com a luz.

Se há algumas passagens excessivas – como uma “Pietà” entre avó e neto que remete a uma cena de Pixote, ou mesmo a performance (sintomaticamente aplaudida durante a projeção em Paulínia) de Irandhir Santos dublando a canção Fala, dos Secos e Molhados, para perplexidade dos sertanejos circunstantes –, isso pode ser debitado ao desejo de marcar posição, de criar ostensivamente momentos antológicos. Deslizes, se é que o são, que não chegam a empanar o brilho desse belo filme.

*José Gerado Couto é crítico de cinema e tradutor. Publica suas criticas no blog do IMS. Para ler as edições anteriores da coluna, clique aqui

Fonte: EcoDebate

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