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sexta-feira, 23 de maio de 2014

Por um reino mais igual

Animais não humanos ganharam o status de “seres vivos dotados de sensibilidade” na França desde abril deste ano, quando a Assembleia Nacional aprovou uma mudança no seu Código Civil. Até então, eles eram considerados apenas “bens móveis”, sem direitos específicos, mesmo sendo criaturas com vida. Segundo deputados, a emenda é um avanço nas leis para maior proteção dos bichos (mais em “Na linha de produção”).

Essa é uma das medidas atuais que tentam mudar uma relação de superioridade estabelecida pela espécie humana sobre os outros companheiros do reino Animalia. Nós, Homo sapiens, percorremos a História dependendo deles para nossa alimentação, vestuário, transporte e para desenvolver a biomedicina e até cosméticos.

Em retribuição, nem sempre oferecemos conforto ou uma vida digna aos que matamos para benefício próprio ou de outros. As condições de muitas fazendas de criação são precárias, com animais confinados em espaços sujos e tão pequenos que mal conseguem se mexer ao longo de suas breves vidas. Para que não soframos com substâncias químicas em produtos de higiene, pingamos agentes químicos nos olhos de coelhos e esperamos dias para ver se há – e em que nível – irritabilidade ou toxicidade.

Seriam atitudes chamadas “desumanas” se acontecessem com nossos semelhantes,como foram consideradas as experiências científicas com judeus durante o nazismo. Só por que se dão com animais não são então vergonhosas? “É inegável que vivemos em uma sociedade antropocêntrica. As leis são feitas pelos humanos para humanos. O animal sempre foi um coadjuvante, e isso precisa ser diferente”, afirma Anamaria Feijó, coordenadora do Laboratório de Bioética e Ética Aplicada a Animais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS).
A mudança a que ela se refere seria uma nova ética para que homens e mulheres deem valor à vida de todas as espécies. Como escreveu o cientista político indiano Rajni Kothari no artigo “Environment, technology, and ethics” [1], se quisermos alcançar o desenvolvimento sustentável é necessária outra ética com os seres vivos. “(A mudança para o desenvolvimento sustentável) Não é um ajuste tecnológico, nem se trata de um novo investimento financeiro. Trata-se de uma mudança de valores tal que a natureza seja valorizada por si mesma e pelas suas funções que suportam a vida e não meramente pelo fato de poder ser convertida em recursos e commodities visando alimentar a máquina do crescimento econômico.”
[1] Publicado no livro Ethics of Environment and Development: global challenge, international response, pela Universidade do Arizona, 1991
A exemplo da visão utilitarista sobre os animais, basta analisar as palavras envolvidas no processo para produção de nossa comida, como explica Celso Funcia Lemme, responsável pela área de sustentabilidade corporativa do Instituto Coppead de Administração da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Chamamos os sistemas de ‘produção animal industrial’. Relacionar os animais a uma palavra designada a máquinas só pode indicar um problema nesse sistema”, reflete.

O uso intensivo de animais em pesquisas científicas e para fins didáticos foi crescente a partir do século XIX. Nessa época, surgem as sociedades protetoras. A pioneira foi fundada na Inglaterra em 1824

VIDA E MORTE DIGNAS

O conceito de bem-estar animal, principalmente em relação aos de produção, está ganhando espaço nas agendas da sustentabilidade A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), por exemplo, publicou em outubro do ano passado um documento com diretrizes e indicadores para o desenvolvimento sustentável. Consta na lista a garantia de uma vida e morte dignas e sem sofrimento aos chamados “animais de consumo”.
Segundo a FAO, a questão ética é a principal razão para que cuidemos dos bichos, afinal, as projeções apontam que a produção da pecuária deve dobrar até 2050, principalmente nos países em desenvolvimento (leia mais em “Qualidade de vida à matéria-prima”).
Um dos primeiros e mais populares significados sobre bem-estar animal foi definido pelo inglês Barry Hughes em 1976 como “um estado de completa saúde física e mental, em que o animal está em harmonia com o ambiente que o rodeia”.
Em 1993, um comitê internacional de veterinários apresentou indicadores mais específicos para uma vida de qualidade de espécies de produção que ficaram conhecidos como as “Cinco Liberdades” – as quais humanos não poderiam desrespeitar. Hoje, o texto é aplicado a qualquer espécie. Segundo esse preceito, todo animal deve ser:

- Livre de fome e sede;
- Livre de desconforto;
- Livre de dor, ferimentos e doenças;
- Livre de medo e estresse;
- Livre para expressar seu comportamento natural.

O principal argumento para os defensores desses princípios é o conceito de senciência, que é a capacidade de sentir prazer e dor, manifestar felicidade e sofrimento e ter pensamentos e lembranças, reconhecida em todos os animais vertebrados – portadores de sistema nervoso central–, como mamíferos e aves. Portanto, constitui a palavra-chave para a ética animal.
“Até o conceito de seres sencientes, só a filosofia afirmava que os animais podiam ser conscientes de si. Quando cientistas provaram a senciência, os argumentos de que os animais são muito mais racionais do que imaginamos ficaram mais fortes”, analisa Anamaria. Ela afirma que o bem-estar animal deve ser tratado com o máximo de simpatia e o mínimo de sentimentalismo, pois todas as espécies merecem o mesmo tratamento, independentemente de sua relação com os humanos.

“O problema não consiste em saber se os animais podem raciocinar; tampouco interessa se falam ou não; o verdadeiro problema é este: podem eles sofrer?” A frase do filósofo Jeremy Bentham, em 1789, foi crucial para a argumentação dos defensores dos animais
PESSOAS NÃO HUMANAS

Mais do que serem capazes de sentir prazer ou dor, golfinhos e baleias possuem uma inteligência destacada. Pesquisas e situações reais já provaram que eles são capazes de se reconhecer no espelho, pedir auxílio ou ajudar outros animais ou até pessoas em perigo. Os golfinhos, em especial, possuem o segundo maior cérebro entre os animais, quando comparado com seu peso corporal. Ficam apenas atrás dos homens e mulheres.
Diante dessa inteligência e capacidade de socialização e comunicação, a ordem dos cetáceos obteve um reconhecimento diferenciado e inédito. No ano passado, a Índia foi o primeiro país a declarar que são “pessoas não humanas” e decretou a proibição de cetáceos em cativeiros. A medida foi assinada pelo Ministério do Meio Ambiente e das Florestas. Agora, esses mamíferos marinhos ficarão sob leis específicas, mas que ainda não foram aprovadas.

Em 2012, cientistas reunidos na conferência da Associação Americana para o Progresso da Ciência já haviam lançado um projeto para aprovar uma lei semelhante e apoiado a Declaração de Direitos dos Cetáceos, lançada no ano anterior e disponível na internet para coleta de assinaturas.
RESPALDO DA LEI

Tramita na Câmara dos Deputados brasileira o Projeto de Lei nº 6.799/13, do deputado Ricardo Izar (PSD-SP), que propõe a mudança na natureza jurídica dos animais para que eles se tornem “sujeitos de direito” e não mais bens de posse. De acordo com Izar, a legislação brasileira sobre crimes ambientais, que aborda os maus-tratos a animais, é insuficiente para protegê-los, além de prever penas brandas demais [2].
[2] A Lei nº 9.605/98 prevê detenção de três meses a um ano e multa para quem “praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos, nativos ou exóticos”

Na Europa, a legislação que versa sobre o bem-estar animal está à frente do resto do mundo desde que o Parlamento Europeu aprovou o fim do desenvolvimento, da venda e importação de cosméticos produzidos com testes em animais. Segundo Anamaria Feijó, os testes para produtos considerados menos cruciais do que remédios tendem a deixar de ser feitos com animais, conforme se desenvolvam métodos alternativos (leia mais sobre em “Experimentar é preciso”).

Em janeiro deste ano, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, sancionou uma lei que proibirá testes em animais para a indústria de cosméticos, perfumes e produtos de higiene pessoal no estado, mas ela não foi regulamentada até o momento. Ricardo Izar vê com ceticismo uma lei restrita a um estado. “Se a lei entrar em vigor, as empresas simplesmente mudarão de estado. É preciso uma lei nacional”, afirma o deputado que já escreveu e propôs o Projeto de Lei nº 6.602/13 [3].

[3] O PL pretende alterar a Lei nº 11.794/08, de modo a proibir o uso de animais em atividades de ensino, pesquisas e testes laboratoriais para desenvolver cosméticos, além de aumentar o valor da multa em caso de descumprimento do dispositivo legal
Tanto Anamaria Feijó quanto Celso Lemme acreditam que a ética dos humanos para os animais esteja evoluindo. Lemme compara as mudanças em fazendas de criação, por exemplo, ao processo histórico de abolição da escravidão no Brasil. “Consideramos a Lei Áurea o fim da escravatura, mas ela foi fruto de um processo que incluiu outras medidas, como as leis do Ventre Livre e dos Sexagenários. Houve uma preparação econômica e até social dos senhores de terras.”

Para ele, a mudança vem aos poucos porque vivemos sempre “na inércia”. “Os donos de frigoríficos podem dizer que não haverá lucro com outro sistema produtivo apenas porque não conhecem alternativas”, diz.

O professor acredita que o fator econômico é importante para a mudança. “As sociedades humanas repensam seus caminhos por meio da ética, mas os estímulos econômicos têm grande influência na velocidade das mudanças.”E conclui: “Nosso problema não é comermos carne porque todo carnívoro mata o animal para se alimentar. Só que, na natureza, não há carnívoro que torture”.

Fonte: Mercado Ético

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