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quinta-feira, 22 de maio de 2014

Uma alimentação viciada em petróleo, artigo de Esther Vivas

Comemos petróleo, ainda que não pareça. O atual modelo de produção, distribuição e consumo de alimentos é viciado em “ouro negro”. Sem petróleo, não poderíamos comer como o fazemos. Num cenário onde vai ser cada vez mais difícil extrair petróleo e este ficará mais caro, como nos vamos alimentar?


A agricultura industrial tornou-nos dependentes do petróleo. Precisamos dele, desde o cultivo, à colheita, passando pela comercialização e até o consumo. A revolução verde, as políticas que nos disseram que modernizariam a agricultura e acabariam com a fome, e que foram implementadas entre os anos 40 e 70, converteram-nos em “yonquis/1” deste combustível fóssil, em parte graças ao seu preço relativamente barato. A mecanização dos sistemas agrícolas e o uso intensivo de fertilizantes e pesticidas químicos são o melhor exemplo. Estas políticas significaram a privatização da agricultura, deixando-nos, camponeses e consumidores, nas mãos de um punhado de empresas do agronegócio.

Apesar da revolução verde ter prometido que aumentaria a produção de comida e, em consequência, acabaria com a fome, a realidade não foi assim. Por um lado, é verdade que a produção por hectare cresceu. Segundo dados da FAO, entre os anos 70 e 90, o total de alimentos per capita a nível mundial subiu cerca de 11%. No entanto, isto não se repercutiu, como assinala Jorge Riechmann na sua obra ‘Cuidar a (T)terra’, numa diminuição real da fome, já que o número de pessoas famintas no planeta, nesse mesmo período e sem contar com a China ,cuja política agrícola se regia por outros parâmetros, ascendeu, também, em 11%, passando de 536 milhões para 597.

Por outro lado, a revolução verde teve consequências muito negativas para pequenos e médios camponeses e para a segurança alimentar a longo prazo. Em concreto, aumentou o poder das empresas agroindustriais em toda a cadeia produtiva, provocou a perda de 90% da agro e da biodiversidade, reduziu massivamente o nível freático, aumentou a salinidade e a erosão do solo, deslocou milhões de agricultores do campo para os bairros de lata urbanos, desmantelando os sistemas agrícolas tradicionais, e converteu-nos em dependentes do petróleo.

Uma agricultura ‘yonqui’

A introdução de maquinaria agrícola em grande escala foi um dos primeiros passos. Nos Estados Unidos, por exemplo, em 1850, como indica o relatório Food, Energy and Society, a tração animal era a principal fonte de energia no campo, representava cerca de 53% do total, seguida da força humana, com cerca de 13%. Cem anos mais tarde, em 1950, ambas somavam apenas 1%, devido à introdução de máquinas de combustível fóssil. A dependência da maquinaria agrícola (tratores, ceifeiras-debulhadoras, caminhões…) é enorme, e ainda é mais necessária tratando-se de grandes plantações e monoculturas. Desde a produção, a agricultura está “dependente” do petróleo.

O sistema agrícola atual com o cultivo de alimentos em grandes estufas, independentemente da sazonalidade e do clima, aumenta também a necessidade de derivados do petróleo e o elevado consumo energético. Desde mangueiras passando por contentores, acolchoados, redes até tetos e coberturas, tudo é plástico. O Estado espanhol, segundo dados do Ministério da Agricultura e do Meio Ambiente, está à cabeça do cultivo sob plástico na Europa mediterrânica com 66 mil hectares cultivados, a maior parte na Andaluzia, e em particular em Almeria, seguida, a distância, de Múrcia e Canárias. E, que fazer com tanto plástico uma vez acabada a sua vida útil?

O uso intensivo de adubos e pesticidas químicos são mais um exemplo de como o modelo alimentar é viciado em petróleo. A comercialização de adubos e pesticidas aumentou 18% e 160%, respectivamente, entre os anos 1980 e 1998, segundo o relatório Eating oil: food suply in a changing climate. O sistema agrícola dominante precisa de elevadas doses de adubos fabricados a partir do petróleo e do gás natural, como amoníaco, ureia, etc., que substituem os nutrientes do solo. Multinacionais petrolíferas, como Repsol, Exxon Mobile, Shell, Petrobras contam na sua carteira com investimentos na produção e comercialização de fertilizantes agrícolas.

Os pesticidas químicos sintéticos são outra fonte importante da dependência deste combustível fóssil. A revolução verde, como analisávamos, generalizou o uso de pesticidas e, em consequência, a necessidade de petróleo para os fabricar. E tudo isto, sem mencionar o impacto ambiental do uso desses agrotóxicos, a contaminação e esgotamento de solo e águas, e o impacto na saúde de camponeses e consumidores.

Alimentos viajantes

A necessidade de petróleo notamo-la, também, nas longas viagens que os alimentos percorrem desde onde são cultivados até ao lugar em que são consumidos. Calcula-se que a comida viaje em média cerca de 5 mil quilômetros do campo até ao prato, segundo um relatório de Amigos da Terra, com a consequente necessidade de hidrocarbonetos e com o impacto ambiental. Estes “alimentos viajantes”, segundo esse relatório, geram quase 5 milhões de toneladas de CO2 por ano, contribuindo para o agravamento das alterações climáticas.

A globalização alimentar na corrida ao máximo lucro, deslocaliza a produção de alimentos, como fez com tantos outros ramos da economia produtiva. Produz-se em grande escala nos países do Sul, aproveitando as condições laborais precárias e uma legislação ambiental inexistente, e vende-se a mercadoria, posteriormente aqui a um preço competitivo. Ou produz-se no Norte, graças a subvenções à agricultura nas mãos de grandes empresas, para depois se comercializar essa mercadoria subvencionada na outra ponta do planeta, vendendo abaixo do preço de custo e fazendo concorrência desleal à produção autóctone. Aqui reside o porquê dos alimentos quilométricos: máximo lucro para uns poucos; máxima precariedade, pobreza e contaminação ambiental para a maioria.

No ano de 2007, importaram-se mais de 29 milhões de toneladas de alimentos no Estado espanhol, 50% mais do que em 1995. Três quartos foram cereais, preparados de cereais e rações para a criação industrial de gado, a maior parte provindos de Europa e América Central e do Sul, como indica o relatório Alimentos quilométricos. Inclusive alimentos típicos, como o grão de bico ou o vinho, acabamos por consumi-los a milhares de quilômetros de distância. 87% do grão de bico que comemos aqui vem do México, no Estado espanhol o seu cultivo caiu abruptamente. Que sentido tem esta viagem internacional de alimentos de um ponto de vista social e ambiental? Nenhum.

Uma comida típica dominical da Grã-Bretanha com batatas de Itália, cenouras da África do Sul, feijões da Tailândia, carne de vaca da Austrália, brócolis da Guatemala e sobremesa com morangos da Califórnia e mirtilos da Nova Zelândia gera, segundo o relatório Eating oil: food suply in a changing climate, 650 vezes mais gases de efeito de estufa, devido ao transporte, que se esta comida tivesse sido cultivada e comprada localmente. O número total de quilômetros que o conjunto destes “alimentos viajantes” somam do campo até à mesa é de 81 mil, o equivalente a duas voltas inteiras ao planeta terra. Algo irracional, se tivermos em conta que muitos destes produtos são cultivados no território. A Grã-Bretanha importa grandes quantidades de leite, porco, borrego e outros alimentos básicos, apesar de exportar quantidades semelhantes dos mesmos. Aqui, em Espanha, passa-se o mesmo.

Comendo plástico

E quando os alimentos chegam ao supermercado, que sucede? Plástico e mais plástico, com derivados do petróleo. Assim, encontramos uma embalagem primária que contém o alimento, um pacote secundário que permite uma atraente exibição no estabelecimento e, finalmente, sacos para o levar do “super” a casa. Na Catalunha, por exemplo, dos 4 milhões de toneladas de resíduos anuais, 25% correspondem a embalagens de plástico. Os supermercados empacotam tudo, a venda a granel passou à história. Um estudo encomendado pela Agência Catalã do Consumo concluiu que comprar no comércio de proximidade gera menos 69% de resíduos, do que fazendo-o num supermercado ou numa grande superfície.

Uma estória pessoal ilustra bem esta tendência. Em pequena, em minha casa comprava-se água engarrafada em grandes garrafas de vidro de oito litros, hoje quase toda a água que se comercializa é engarrafada em embalagens de plástico. E tornou-se moda, inclusive, comprá-la em embalagens de seis unidades de litro e meio. Não é de estranhar, pois, que dos 260 milhões de toneladas de resíduos de plástico do mundo, a maior parte sejam embalagens de garrafas de água ou leite, como indica a Fundação Terra. O Estado espanhol, segundo essa fonte, é o principal produtor na Europa de sacos de plástico de um só uso e o terceiro consumidor. Calcula-se que a vida útil de um saco de plástico é de 12 minutos em media, mas a sua decomposição pode demorar 400 anos. Tirem conclusões.

Vivemos num planeta de plástico, como retratava brilhantemente o austríaco Werner Boote no seu filme ‘Plastic Planet‘ (2009), onde afirmava: “A quantidade de plástico que produzimos desde o princípio da idade do plástico é suficiente para envolver até seis vezes o planeta com sacos”. E não só isso, que impacto tem na saúde a sua omnipresença na nossa vida quotidiana? Um depoimento nesse filme dizia: “Comemos e bebemos plástico”. E, como denuncia o documentário, tarde ou cedo, pagaremos a fatura.

A grande distribuição não só generalizou o consumo de enormes quantidades de plástico, mas também o uso do carro para ir às compras. A proliferação de hipermercados, grandes armazéns e centros comerciais fora das cidades obrigou ao uso do carro privado para a deslocação até estes estabelecimentos. Se tomarmos como exemplo a Grã-Bretanha, como indica o relatório Eating oil: food suply in a changing climate, entre os anos 1985/86 e 1996/98 o número de viagens de carro por semana e por pessoa para fazer compras passou de 1,7 para 2,4. O total da distância percorrida, também, aumentou, dos 14 km por pessoa por semana para 22 km, uma subida de 57%. Mais quilômetros, mais petróleo e mais CO2, em detrimento, além disso, do comércio local. Se no ano de 1998, existiam no Estado espanhol 95 mil lojas, em 2004 este número tinha-se reduzido para 25 mil.

Que fazer?

Segundo a Agência Internacional da Energia, a produção de petróleo convencional atingiu o seu pico em 2006. Num mundo, onde o petróleo escasseia, o que vamos comer e como? Em primeiro lugar, é necessário ter em conta que quanto mais agricultura industrial, intensiva, quilométrica, globalizada, maior dependência do petróleo. Ao contrário, um sistema camponês, agroecológico, local, sazonal, menos “dependência” dos combustíveis fósseis. A conclusão, creio, é clara.

É urgente apostar num modelo de agricultura e alimentação antagônico ao dominante, que ponha no centro as necessidades da maioria e o ecossistema. Não se trata de uma volta romântica ao passado, mas sim da imperiosa necessidade de cuidar da terra e garantir comida para todos. Ou apostamos na mudança ou quando não houver mais remédio senão mudar, outros, como tantas vezes, vão fazer negócio com a nossa miséria. Não deixemos que se repita a história.

*Artigo publicado em Publico.es em 5 de maio de 2014. Tradução: Esquerda.net.
1/ Viciados e dependentes.

**Esther Vivas, Colaboradora Internacional do Portal EcoDebate, é ativista e pesquisadora em movimentos sociais e políticas agrícolas e alimentares, autora de vários livros, entre os quais “Planeta Indignado”. Esther Vivas é licenciada em jornalismo e mestre em Sociologia. Seus principais campos de pesquisa passam por analisar as alternativas apresentadas por movimentos sociais (globalização, fóruns sociais, revolta), os impactos da agricultura industrial e as alternativas que surgem a partir da soberania alimentar e do consumo crítico.

+info: http://esthervivas.com/portugues



Fonte: EcoDebate

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