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terça-feira, 30 de setembro de 2014

Biologia sintética: ‘Essa tecnologia é necessária?’ Entrevista com Silvia Ribeiro

“Não existem legislações adequadas à biologia sintética e há total ignorância acerca dos efeitos dos produtos derivados da biologia sintética sobre a saúde”, adverte a pesquisadora do Grupo ETC.



“Supostamente mais amigável com o meio ambiente”, tendo a biomassa como matéria-prima para produzir combustíveis e plástico, a biologia sintética não é uma proposta para sair da dependência dos combustíveis fósseis, diz Silvia Ribeiro à IHU On-Line.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, ela adverte que as transnacionais petroleiras, empresas químicas e farmacêuticas que financiam as pesquisas de biologia sintética visam à “construção em laboratório de sequências genéticas sintéticas para construir, por exemplo, rotas metabólicas que alterem funções específicas em microrganismos ou para criar micróbios sintéticos inteiros com novas funções, capazes de produzir substâncias industriais”. Segundo ela, a manipulação ou criação de micróbios através da biologia sintética possibilitará “processar qualquer fonte de carboidratos como base para a construção de polímeros que podem ser processados, como combustíveis, farmacêuticos, plásticos ou outras substâncias industriais. Atualmente, isto é em grande parte teórico ou está apenas na fase experimental, mas em alguns setores já funciona no âmbito da produção industrial”.

Silvia adverte ainda que, com o desenvolvimento da biologia sintética, a tendência é de que haja um “aumento exponencial da exploração da biomassa planetária”, já que “tudo o que esteja vivo ou tenha estado, seja natural ou cultivado, seja resíduos de colheitas ou plantações florestais, alimentos, algas, fibras vegetais, passa a ser categorizado como ‘biomassa’, uma matéria-prima universal que pode ser processada com biologia sintética”. Nessa perspectiva, enfatiza, os territórios e produções camponesas e indígenas “se verão despojados por esta nova indústria baseada na biologia sintética”.

Apesar de as principais pesquisas sobre biologia sintética estarem sendo desenvolvidas nos Estados Unidos e na Europa, Silvia informa que “a indústria está deslocando a produção – não a pesquisa – para países como o Brasil, com biomassa abundante e barata e, no caso da produção da cana-de-açúcar, até com trabalho semiescravo”. E acrescenta: “Por isso, no Brasil, há empreendimentos como o da Amyris, que além do farneseno estão produzindo esqualeno (naturalmente derivado da oliva) e patchouli para a indústria cosmética”.

Silvia lembra também que, além das implicações relacionadas ao meio ambiente e à vida de comunidades indígenas e camponesas, a biologia sintética permite a possibilidade de “fabricar vida totalmente artificial a partir do zero e micróbios com capacidades que não existiam. Por essa razão, sua liberação intencional ou acidental – o que é muito fácil de acontecer, pois os tanques não são instalações de alta segurança, apenas outro processo industrial a mais – poderia ter consequências imprevisíveis e potencialmente devastadoras”.

Silvia Ribeiro é pesquisadora e coordenadora de programas do Grupo ETC, grupo de pesquisa sobre novas tecnologias e comunidades rurais, com sede no México. Ela tem ampla bagagem como jornalista e ativista ambiental no Uruguai, Brasil e Suécia. Silvia também produziu uma série de artigos sobre transgênicos, novas tecnologias, concentração empresarial, propriedade intelectual, indígenas e direitos dos agricultores, que têm sido publicados em países latino-americanos, europeus e norte-americanos, em revistas e jornais, bem como vários capítulos de livros. Ela é membro da comissão editorial da Revista Latino-Americana Biodiversidad, sustento y culturas, e do jornal espanhol Ecología Política, entre outros.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como e a partir de quais interesses a biologia sintética se desenvolveu nos últimos anos?

Silvia Ribeiro - No final do milênio e facilitada pela manifestação de múltiplas crises globais, começou a tomar forma a visão de uma economia “pós-petroleira”, supostamente mais amigável com o ambiente, baseada no uso industrial da biomassa como matéria-prima. Sem uma análise cuidadosa, isso poderia representar uma opção sensata para sair da dependência de combustíveis fósseis como o petróleo, carvão e gás. Mas, o que é realmente?

Assim como as outras propostas englobadas na chamada “bioeconomia” ou “economia verde”, a economia industrial da biomassa não faz nenhum questionamento aos padrões dominantes de consumo e produção, nem às injustiças sociais, econômicas e ecológicas globais que estes provocaram. Propõe apenas outras rotas para poder continuar com o mesmo modelo, neste caso mudando a fonte das matérias-primas e as tecnologias usadas.

Um elemento central para esta nova “economia da biomassa” é o uso da biologia sintética: a construção em laboratório de sequências genéticas sintéticas para construir, por exemplo, rotas metabólicas que alterem funções específicas em microrganismos ou para criar micróbios sintéticos inteiros com novas funções, capazes de produzir substâncias industriais.

Com micróbios manipulados (ou criados) com biologia sintética, seria possível processar qualquer fonte de carboidratos como base para a construção de polímeros que podem ser processados como combustíveis, farmacêuticos, plásticos ou outras substâncias industriais. Atualmente, isto é em grande parte teórico ou está apenas na fase experimental, mas em alguns setores já funciona no âmbito da produção industrial.



“A primeira pergunta a ser feita é se esta perigosa tecnologia é necessária. A resposta é ‘não’”

Neste horizonte, toda a natureza, os ecossistemas, tudo o que esteja vivo ou tenha estado, seja natural ou cultivado, seja resíduos de colheitas ou plantações florestais, alimentos, algas, fibras vegetais, passa a ser categorizado como “biomassa”, uma matéria-prima universal que pode ser processada com biologia sintética. Por isso, esta perspectiva implica um aumento exponencial da exploração da biomassa planetária.

Sem contar que esta “biomassa”, em muitos casos, não é tal, mas são territórios e produções camponesas e indígenas que se verão despojados por esta nova indústria baseada na biologia sintética. Há, pois, um problema global: a apropriação industrial de biomassa planetária, segundo os institutos que calculam a pegada ecológica, como o Global Ecological Footprint Network, já rebaixou em muito os limites da sua capacidade de renovação. Isto quer dizer que já antes mesmo desta nova expansão industrial, consome-se a biomassa mais rapidamente que sua capacidade de regeneração, pelo que já não é um recurso renovável.

Investidores em biologia sintética

Entre os grandes investidores em biologia sintética encontram-se seis das dez maiores empresas petroleiras e de energia, seis das dez maiores empresas químicas, seis das dez maiores empresas de agronegócios e as sete maiores farmacêuticas em nível global. Agora se somaram também muitas das indústrias de cosméticos e aditivos alimentares.

Por exemplo, encontramos empresas como a Shell, Exxon, BP, Chevron, Total, Basf, Dow, DuPont, Monsanto, Cargill, ADM, Bunge, Vale, Pfizer, Sanofi-Aventis, GlaxoSmithKline, Novartis, Roche, Merck, e agora também a Givaudan, International Flavours & Fragances Inc. Várias dessas empresas têm investimentos em biologia sintética no Brasil, assim como também a Petrobras. Em geral, com acordos com companhias novas menores, dedicadas especificamente à biologia sintética, como Amyris, Solazyme, Codexis, LS9 e outras similares.

IHU On-Line – Quais são os objetivos da biologia sintética no longo prazo?

Silvia Ribeiro - O objetivo fundamental, porque é o mais lucrativo, é a produção de combustíveis, e em segundo lugar de plásticos, o que explica que todas as grandes petroleiras e a indústria petroquímica estejam investindo nesta indústria. No entanto, encontraram dificuldades para aumentar a produção, motivo pelo qual parte da indústria se voltou, com as mesmas tecnologias, para outros ramos, sem abandonar o setor energético. O setor industrial de biologia sintética que mais rapidamente cresce é a produção com biologia sintética de fármacos, saborizantes e fragrâncias de origem botânica, que, ao contrário da produção de combustíveis, se concentra em produtos de pouco volume e alto valor agregado. Este setor da indústria ameaça diretamente milhões de camponeses e camponesas do Terceiro Mundo que vivem deste tipo de produção como sua fonte de sustento.

O caso mais avançado em combustíveis derivados com biologia sintética é o produzido pela Amyris, companhia líder do setor, que inclusive instalou uma subsidiária no Brasil. A partir de contratos com grandes companhias de grãos e cana-de-açúcar no Brasil (Cosan, Açúcar Guarani e a transnacional Bunge no Brasil), começou a produzir o farneseno a partir de uma levedura modificada com biologia sintética, que é usado como combustível em ônibus em São Paulo. A Amyris, por sua vez, fez outros acordos para a produção de combustíveis com petroleiras (Total, Chevron, Shell) e outras do setor automotivo, como a Mercedes Benz e a Michelin Tire.

IHU On-Line – Quais são os produtos desenvolvidos pela biologia sintética?

Silvia Ribeiro - Como já mencionei, além do farneseno da Amyris no Brasil, há “biorrefinarias” da DuPont produzindo algo parecido ao plástico, para o que usam milho, mas o resultado não é biodegradável. Procuram enganar o público dizendo que é “biobaseado”, mas na realidade tomam mais de 150 mil toneladas de milho para produzir aproximadamente 45 mil toneladas desse produto, ou seja, não tem nada de sustentável e, além disso, exacerba a competição com a produção alimentar e provoca o aumento do preço dos alimentos, situações já graves porque os Estados Unidos destinam 40% do milho a agrocombustíveis. A chamada segunda e seguintes gerações de agrocombustíveis baseiam-se, em sua grande maioria, em biologia sintética e absolutamente não vão resolver o conflito com os alimentos.

Afora que todos os produtos de biologia sintética que estão desenvolvendo são substituições de produtos que já existiam no mercado, derivados botânicos que são usados para farmacêuticos, saborizantes, fragrâncias e produtos de higiene, como o óleo de vetiver, baunilha, açafrão, esqualeno (umectante), patchouli, óleo de ácido láurico e mirístico (que são comumente derivados da palma e babaçu). No ramo farmacêutico, a empresa Sanofi está produzindo artemisinina, para a malária.

Em todos os casos, são produtos que já existiam, são mercados que não necessitavam de uma produção maior e que vêm da produção natural camponesa. Portanto, a biologia sintética não agrega nenhum benefício. São grandes transnacionais que tentam substituir os produtos camponeses de alto valor agregado por produção industrial em tanques, com o único objetivo real de aumentar seus lucros.



“Assim como as outras propostas englobadas na chamada ‘bioeconomia’ ou ‘economia verde’, a economia industrial da biomassa não faz nenhum questionamento aos padrões dominantes de consumo e produção, nem às injustiças sociais, econômicas e ecológicas globais que estes provocaram”

IHU On-Line – Em quais países a pesquisa sobre biologia sintética está sendo desenvolvida?

Silvia Ribeiro - A pesquisa está sendo desenvolvida, sobretudo, na Europa e nos Estados Unidos, embora haja também alguma pesquisa em alguns poucos países do Sul. Por exemplo, a Embrapa tem um laboratório de nanotecnologia e biologia sintética.

O que está claro é que a indústria está deslocando a produção – não a pesquisa – para países como o Brasil, com biomassa abundante e barata e, no caso da produção da cana-de-açúcar, até com trabalho semiescravo. Por isso, no Brasil, há empreendimentos como o da Amyris, que além do farneseno estão produzindo esqualeno (naturalmente derivado da oliva) e patchouli para a indústria cosmética.

Também a Solazyme associou-se à Bunge, e receberam um financiamento do BNDES, em 2013, da ordem de 246 milhões de reais para produzir óleo de ácido láurico e mirístico, que substitui o óleo de palma, coco, cacau e babaçu. Esta produção é feita com algas manipuladas com biologia sintética, mas feita em tanques, ou seja, são heterotróficas, não usam a luz para se reproduzirem, mas têm que ser alimentadas com açúcares, o que aumenta também essa demanda. Portanto, não trazem nada de novo; somente deslocam a produção de camponeses e indígenas, como as quebradeiras de coco babaçu e outras produções similares. A transnacional Unilever comprometeu-se a comprar da Solazyme a sua produção, que é usada em sabonetes e outros produtos de higiene.

IHU On-Line – Em que medida a biologia sintética impacta as comunidades indígenas e camponesas? Pode dar alguns exemplos de como isso acontece?

Silvia Ribeiro - O que acabo de relatar é um exemplo claro, que se repete em todos os produtos derivados botânicos citados. Por exemplo, o óleo de vetiver é uma renda econômica fundamental para 60 mil famílias camponesas em países como o Haiti; o mesmo acontece com o açafrão no Irã. A baunilha natural é fonte de ingressos para mais de 200 mil camponesas e camponeses no México, Indonésia, Madagascar e outros países.

Talvez o caso mais brutal seja o da artemisinina. A produção com biologia sintética foi desenvolvida, com recursos públicos dos Estados Unidos, por Jay Keasling, que depois fundou sua empresa, a Amyris. A Amyris licenciou a tecnologia para a transnacional Sanofi para produzir o princípio ativo para os tratamentos contra a malária e afirmou que seria mais barato que a já existente. Ambas as empresas e cientistas, que não conhecem bem o caso, percorrem o mundo tomando isso como exemplo das contribuições da biologia sintética para a saúde.

No entanto, a realidade é que a artemisinina, que é derivada da planta Artemísia annua (absinto doce), já era produzida, em quantidades suficientes para suprir todo o mercado mundial, por mais de 200 mil camponeses, sobretudo na África, mas também na América Latina e na Ásia. A produção é feita em propriedades rurais de em média 0,2 hectare, além de produzir alimentos. Portanto, a artemisinina, além de ser um composto natural, era também a fonte de renda efetiva de 200 mil famílias camponesas, que, dessa maneira, podiam permanecer no campo.

Com o anúncio da Sanofi de que venderia a artemisinina sintética mais barata, o preço pago aos camponeses caiu aproximadamente pela metade, tornando inviável para eles a produção. Com o desaparecimento da artemisinina natural, a Sanofi voltou a aumentar o preço, que passou a ser vendida novamente pelo mesmo preço de antes ao consumidor, mas os lucros agora são das transnacionais.

A artemisinina de biologia sintética da Amyris-Sanofi, além disso, produz resistência mais rapidamente, razão pela qual estão destruindo, além dos meios de vida de camponeses pobres da África, o único remédio atualmente eficaz contra a doença.

IHU On-Line – Quais são os dilemas éticos implicados no desenvolvimento e rendimento da biologia sintética?

Silvia Ribeiro - Além dos já citados, estamos falando da possibilidade de fabricar vida totalmente artificial a partir do zero e micróbios com capacidades que não existiam. Por essa razão, sua liberação intencional ou acidental – o que é muito fácil de acontecer, pois os tanques não são instalações de alta segurança, apenas outro processo industrial a mais – poderia ter consequências imprevisíveis e potencialmente devastadoras. Imagine a fuga de micróbios que comem celulose, que está presente em toda a matéria vegetal.

IHU On-Line – Que problemas e relações são fundamentais numa discussão sobre o desenvolvimento da biologia sintética?

Silvia Ribeiro - Assim como com os transgênicos, a primeira pergunta a ser feita é se esta perigosa tecnologia é necessária. A resposta é “não”. Os transgênicos produzem menos e usam muito mais agrotóxicos que as sementes híbridas, que já trazem embutidos muitos problemas e não resolveram a questão da fome. A biologia sintética vai no mesmo sentido: substituir o que existe, mas mudando quem obtém os benefícios, neste caso, que os lucros fiquem com as transnacionais. O impacto socioeconômico e cultural da biologia sintética pode ser devastador e não foi debatido nem em público nem muito menos com as populações atingidas.

Além disso, a biossegurança relacionada à biologia sintética é um tema novo, já que as legislações existentes não a cobrem. O deficiente funcionamento da CNTBio no Brasil mostra-se novamente autorizando produtos de biologia sintética como se fossem simples transgênicos, quando se trata de inserir até 200 genes, mudar rotas metabólicas, usar tecnologias que nunca antes foram liberadas, etc. Não existem legislações adequadas à biologia sintética e há total ignorância acerca dos efeitos dos produtos derivados da biologia sintética sobre a saúde.



“O impacto socioeconômico e cultural da biologia sintética pode ser devastador e não foi debatido nem em público nem muito menos com as populações atingidas”

O Brasil, como país cultural e biologicamente megadiverso, corre riscos muito maiores e, por isso, este tema merece uma ampla discussão pública. Mas, para que não soframos os impactos antes de poder decidir, faz-se necessário uma moratória da liberação comercial e ao ambiente da biologia sintética. Isto é urgente, até porque todos os produtos da biologia sintética já existem, e não há nenhuma urgência. A única coisa que justifica a não adoção de uma moratória para abrir um amplo debate público informado é proteger os lucros das transnacionais.

IHU On-Line – Quer acrescentar algo?

Silvia Ribeiro - Em outubro, reúne-se a 12ª Conferência das Partes do Convênio da Diversidade Biológica na Coreia. O tema da biologia sintética está na agenda e há a proposta de uma moratória da liberação comercial e ao ambiente. Mesmo que não se proponha uma moratória da pesquisa, o Brasil é dos poucos países que se opõe a essa moratória. Isso vai contra os interesses nacionais e do povo brasileiro, já que os únicos beneficiados da comercialização desta tecnologia são empresas transnacionais.

Fonte: EcoDebate

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