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quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

O culto dos mortos

Para a minha geração Mário Soares é o “Tio da democracia”. Sempre se comportou como um “Tio”, «aquele homem mais velho, que sentimos afeto sem saber porquê, e reconhecemos sabedoria, sagacidade e bom senso».


Talvez por senti-lo como um “Tio” apercebo que a vida é curta e a eternidade é infinita. E desde que o homem é homem, têm os mortos ocupado um lugar privilegiado nas suas inquietações, veneração e crença que no pós-vida continuaram a influenciar os vivos.

Daí os menires e os dólmenes que nos legou e, com o andar do tempo e a sua natural evolução, os gigantescos monumentos, hoje património da humanidade, que não cessam de nos surpreender quando os visitamos.

Lembro Paris, cidade amada de Mário Soares e o célebre cemitério do Père Lachaise para se deparar com 44 hectares habitados pelas maiores celebridades que para lá foram residir depois de 1804, precisamente no ano em que Napoleão Bonaparte, que sempre sentiu o maior dos temores e respeitos pela morte, se fez coroar imperador dos franceses.

Além dos nomes com que nos cruzamos no agradabilíssimo labirinto de ruas e avenidas do Père Lachaise, os nossos olhos deliciam-se com jazigos e estátuas unanimemente reconhecidas em todo o mundo como expressões da mais elevada arte tumular. Ali, até as campas rasas são arte! Por isso, não podemos deixar de pensar no filósofo francês Auguste Comte quando, no seu Catecismo Positivista, escreveu «Os vivos são sempre e cada vez mais necessariamente governados pelos mortos: tal é a lei fundamental da ordem humana.»

A História não desmente Comte e, para o comum dos mortais, mesmo que nela não pense, sabe que toda a sepultura tem sempre algo a dizer. Se bem observada, fala-nos do passado, do presente e, sobretudo, do que nos espera. Já nem falo dos epitáfios, nem da utilidade que, para os vivos, podem ter alguns conselhos que, por vezes, ressaltam do mármore das lápidas de um ou de outro jazigo.

O túmulo é um monumento que permite aos descendentes recordar os seus antepassados e, desse modo, fazer com que eles nunca sejam esquecidos. Constitui igualmente um elo de união e de respeito, obrigando os mais novos a terem presente a passagem pelo mundo dos mais velhos, a fim de tomarem consciência de que não se passa impunemente pela vida. A História, a que anteriormente me referi, também é feita assim e o sentimento patriótico, hoje tão em desuso, também nos é dado pelas sepulturas, porque são elas que recordam os que nos deram a vida e, culturalmente, nos influenciaram.

O centro do “Culto dos Mortos pela Pátria” encontra-se na sala do capítulo no Mosteiro da Batalha, onde em honra dos soldados mortos em combate, representado pelo túmulo dos soldado desconhecido, se encontra uma chama acesa, também conhecida como a “Chama da Pátria”.

Por conseguinte, a par dos reis e dos governantes que construíram o país que somos, existem, no plano mais afetivo, os nossos pais, os nossos avós, os nossos bisavós, etc., com quem devemos encontrar-nos, senão com a regularidade que a vida moderna já não permite, pelo menos de vez em quando, para que assim não venhamos a perder a nossa própria identidade.

Os cemitérios são espaços de arte, arquitectura, escultura e genealogia que transpiram histórias sobre a história política , social e artística, porém caminha-se a grande velocidade para a regressão nos cemitérios de Lisboa e Porto onde mais de metade dos restos mortais são votados ao abandono.

Após a homenagem fúnebre escasseia tempo, vontade. Enfim retrocesso civilizacional, porque, quem abandona os que já passaram pelo mundo dos vivos, nem sequer imagina, como dizia Comte, quem lhe poderá governar a vida. No fundo, é mais uma atitude niilista própria dos tempos pós-modernos que vamos vivendo sem eira nem beira.  

Fonte: Jornal Porto 24

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