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segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Da ditadura à democracia, o que muda no governo?

O francês Jacques Lambert celebrizou a expressão ‘dois Brasis’, título do seu livro clássico sobre as diferenças e desigualdades regionais num país continental como o Brasil. Agora os dois Brasis são outros. A dualidade é entre um Brasil que cresce bastante, graças à expansão do mercado de trabalho, e outro, que cresce pouco, traduzido estatisticamente pelo PIB, o Produto Interno Bruto. O primeiro é o Brasil real. O segundo, a sua imagem, construída pelos economistas.


A formulação me pareceu mais intelectual, formal e abstrata do que a dos economistas tradicionais, tomados como inspiração para a ironia. De qualquer forma, ela foi apresentada por Marcelo Neri. Poucos o conhecem, mas ele consegue ser, ao mesmo tempo, o médico e o monstro, outra criação cerebral, esta da literatura mesmo, e de alto nível, da lavra de Robert Louis Stevenson.

Neri –para continuar a lançar mão da inventiva– cobra o escanteio, dispara para a pequena área, cabeceia a bola, faz o gol e comemora. Está nos dois lados do balcão. É secretário de Assuntos Estratégicos da Presidência da República da doutora Dilma Rousseff. É também presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Ajuda a fazer e a entender o que foi feito. Contribui para os atos e a análise do que aconteceu. Não é de boa ética, nem se enquadra na saudável metodologia científica. Ao invés de verdade, a combinação de papéis antagônicos (ou, pelo menos, contraditórios) pode resultar em mistificação e manipulação.

Ninguém precisa entender de economia, nem ser expert em assuntos estratégicos: basta percorrer de olhos abertos as ruas das cidades e o meio urbano no Brasil para perceber a intensificação do trabalho e a expansão da atividade produtiva. Há casas sendo construídas ou reformadas, novos negócios sendo abertos, prestação de serviços aflorando, o dinheiro circulando.

Esse é o Brasil que cresceu 8,9% no ano passado, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), um crescimento chinês, conforme o ministro-presidente apregoa, registra e aplaude. O outro, o do “Pibinho”, teve incremento de apenas 0,9%, despejando o Brasil do píncaro chinês. Seria a inversão da constatação do futebolístico general Garrastazu Médici: o Brasil vai bem, mas o povo vai mal.

A célebre frase foi dita no auge do “milagre” econômico brasileiro. Era o próprio PIB que tinha expansão asiática naquela época, ao redor dos 10% ao ano (taxa nunca mais igualada, apesar da eterna vigilância do ex-presidente Lula na comparação entre as duas eras, a anterior a ele e a que o sucedeu). Também se podia comprovar esse crescimento sem a necessidade das muletas estatísticas: a classe média comprava carro, a televisão se tornou colorida, a loteria esportiva era uma febre – a atividade econômica fervilhava, em síntese.

Depois de uma viagem ao Nordeste, Médici, que foi ver a fartura, viu a fome, a miséria, o povo sofrido, ao qual se solidarizou em um discurso redigido por alguém que ocupava posição assemelhada à de Neri: o então coronel Octávio Costa, chefe da Assessoria Especial da Presidência da República, a AERP. Era um órgão parecido ao que o doutor Goebbels chefiou sob o nazismo, quando perpetrou outra frase histórica: repetida mil vezes, uma mentira se torna verdade. Com a diferença de que o futuro general Octávio Costa era um humanista (mas ao lado do tirano Médici? Pois é: era mesmo. A vida tem disso, apesar dos explicadores doutrinários).

Durante o período de acentuado crescimento do PIB, na passagem dos anos 1960 para a década seguinte, só um país emparelhava com o Brasil: era o Japão, a China de então. Um dia, se encontraram em Brasília o mago do milagre brasileiro, o ministro Delfim Neto, protagonista destacado como um cantor de ópera, e um dos manufatores do milagre japonês, Saburo Okita.

A conversa mole de Delfim, que prossegue até hoje e encanta os ouvidos petistas, esbarrou no chega-pra-lá do japonês: mas sim, ministro, está tudo bem, mas de quanto é a poupança dos brasileiros? Risos amarelos (invertidos). A taxa de poupança nacional era ridiculamente baixa. Não era possível fazer comparação a sério com a tendência a poupar dos japoneses. Ah, mas temos a Amazônia, acrescentou Delfim. Vamos tirar dela tanto dinheiro (dólares, sobretudo) que ela financiará a manutenção do milagre brasileiro.

De fato, isso tem ocorrido. Mas não foi, e continua a não ser, suficiente para explicar os dois Brasis. O regime militar se lixou para os pobres, apesar da retórica solidariedade de Médici (que não sabia de fato o que dizia ao ler os discursos aos quais não dera a mais remota contribuição). Lixaram-se para os pobres os presidentes da democracia restaurada em 1985. Lula interrompeu esse divórcio brutal.

De origem pobre, no que constituiu biografia singular no topo do poder político nacional, quase sempre partilhado pela elite das 500 grandes famílias brasileiras, os pobres eram sua base eleitoral. Fez por eles o que nenhum outro fez, nem FHC, que criou as políticas de inclusão sem dar-lhes a prioridade devida, mais para compensar do que para impulsionar.

O que era para ser emergencial e transitório se tornou permanente, por seu enorme e surpreendente dividendo eleitoral e político. Os pobres assistidos e favorecidos se tornaram a galinha dos ovos de ouro do PT. De fato, como diz Neri, os postos de trabalho se multiplicaram a ponto de criarem quase o pleno emprego, e os salários na base da pirâmide social foram reajustados por valores acima da inflação. Houve ganhos reais de receita e alguma ascensão social. O Brasil ficou menos desigual, ainda que essa melhora seja cosmética diante do buraco abissal que persiste (e até se agravou) entre os mais ricos e os mais pobres.

Mas é aí que começa a apertar o nó, ameaçando interromper o ciclo desse crescimento, que não é bitolado pelos dois Brasis do ministro-presidente. De fato, o país tem atualmente mais possibilidades de chegar a um desenvolvimento estável e contínuo do que durante o segundo mandato de Getúlio, na administração do seu sucessor, JK, ou no milagre dos generais. No entanto, a descontinuidade já se anuncia no horizonte.

O crescimento do trabalho e a melhoria dos rendimentos serviram à expansão desordenada do consumo. Como o consumo atingiu, em escala sem igual, os bens duráveis, com ênfase no automóvel, a compra teve que ser financiada, e o financiamento começou a extrapolar a geração de caixa das famílias, que são a base desse modelo, na outra extremidade do seu mecanismo sustentado nas exportações de commodities, que permitem a entrada de divisas e atraem capital estrangeiro, voltado para o financiamento do consumo e a desnacionalização da base produtiva. Ou seja: o ingresso de numerosos cavalos de Tróia.

Enquanto o ministro-presidente fazia malabarismos com os dados da PNAD, o Banco Central anunciava um novo recorde nas contas nacionais, depreciadas por Neri: o novo recorde do comprometimento da renda do trabalhador com sua dívida, que se aproxima dos 50% (em tendência ascendente, 45,10%). Com um agravante: o devedor só tem metade do valor a pagar. Ou seja: rola dívida que, um dia, vai estourar.

Nenhuma pessoa sensata e saudável torce para que não dê certo. Seria maravilhoso e justo que, finalmente, o Brasil saísse da montanha russa na qual está aprisionado desde sempre. Sobe, mas um dia vai descer – ou desabar. Dia que pode demorar ou ser abreviado pela persistência de erros já evidenciados na prática. Com a infiltração insidiosa da inflação, a expansão dos gastos do governo, apesar dos sinais de alerta, e a crescente manipulação da realidade por vários tipos de fraudes, o horizonte não é promissor.

Um país só se estabiliza num rumo de crescimento até se tornar uma civilização se consegue ver a verdade. Por um desses mistérios que desafiam a capacidade de percepção da história, durante o período do “milagre” econômico, o governo preservou algumas instituições de aferição da realidade. A principal foi justamente o Ipea, cuja vinculação direta à Presidência da República o vacinou, de certa forma, contra os braços tirânicos dos órgãos militares (e policiais) de informação e repressão. Havia liberdade de pensamento e expressão dentro do instituto, que contava com um produto raro nessa época: a autonomia.

Entende-se melhor essa anomalia contextualizando-a. Os técnicos do Ipea podiam ser marxistas (desde que não tivessem optado pela luta armada contra o regime) e pensar e escrever o que quisessem. O produto dessa atividade é que não saía dos seus altos muros. A verdade era confinada, estratégia montada pelo homem que comandava esse setor no governo: o economista piauiense João Paulo dos Reis Velloso, ainda em plena atividade (e mais preservado que o seu colega, Delfim Neto).

Agora, o que o Ipea faz é apregoado aos quatro ventos pelo seu presidente, já despojado das suas vestes talares de ministro de Assuntos Estratégicos. Daí o governo acreditar no que ele diz, como se não soubesse quem ele é. Da ditadura à democracia, ao que parece, a distinção é mais de estilo do que de substância.

* Lúcio Flávio Pinto é jornalista paraense e editor do Jornal Pessoal (JP)

Fonte: Mercado Ético

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