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quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Brasileiros finalmente debatem testes em animais

O caso da invasão do Instituto Royal, em São Roque, São Paulo, por ativistas buscando “libertar” Beagles na semana passada trouxe à tona um tema que estava distante das rodas de conversas: os testes em animais.
Utilizados na indústria farmacêutica, de cosméticos e na academia – em faculdades como Medicina, Biologia e Veterinária –, os testes em animais costumam ser defendidos por pesquisadores, médicos e empreendedores como necessários para garantir que os efeitos de determinadas substâncias sobre os humanos não sejam prejudiciais e no treinamento acadêmico de profissionais.


Porém, muitas pessoas acabam por questionar a necessidade desse procedimento e o conhecimento que é gerado por ele. Elas argumentam que os testes não são válidos, usam extrema crueldade e que o ser humano não tem o direito de causar sofrimento a outros animais.

Vídeos e relatos dessas cenas estão por toda a parte, e seria impossível dizer que não há abuso em vários casos.

No caso do documentário ‘Não Matarás’, do Instituto Nina Rosa, a situação se mostra realmente chocante – como em testes de toxicidade em que 50% dos animais morrem em 24 horas ou em outros em que cosméticos são testados nos olhos de um coelho – e diversos especialistas argumentam sobre a quantidade de informações divergentes da alegação de que não há alternativas e de que não seria crueldade.

Uma das práticas mais combatidas é a vivissecção, quando são realizadas intervenções em animais vivos com propósitos científicos, como por exemplo a observação de fenômenos fisiológicos ou comportamentais a partir da administração de substâncias químicas.

Em ‘Não Matarás’, um estudante descreve um inesquecível episódio em que, para demonstrar o efeito da estricnina, um rato foi aberto (vivissecção) e ao ser injetada em seu estômago, a substância provocou uma forte convulsão no animal. Após procedimentos como este, os animais geralmente são mortos e descartados.



Segundo a ONG PETA, anualmente mais de 100 milhões de animais (ratos, camundongos, sapos, cães, gatos, coelhos, macacos, porcos, aves) são mortos apenas nos laboratórios dos Estados Unidos para lições de biologia, medicina, experimentações e testes farmacêuticos e de cosméticos.

Mas, de pouco em pouco, parece que cenário tende a mudar. Além do reconhecimento da senciência – capacidade de sentir dor física e psíquica – dos animais, em meados de 2007 neurocientistas de todo o mundo assinaram um manifesto afirmando que todos os mamíferos, aves e outras criaturas têm consciência. Ou seja, possuem a noção de si mesmos, do ambiente que os cerca e do outro, de sua espécie ou de espécie diferentes.

Ao ser perguntado por jornalistas se as conclusões do manifesto tiveram algum impacto sobre o seu comportamento, o renomado neurocientista canadense Philip Low respondeu: “Acho que vou virar vegano. É impossível não se sensibilizar com essa nova percepção sobre os animais, em especial sobre sua experiência do sofrimento.” (Leia a entrevista)

“O mundo gasta 20 bilhões de dólares por ano matando 100 milhões de vertebrados em pesquisas médicas. A probabilidade de um remédio advindo desses estudos ser testado em humanos (apenas teste, pode ser que nem funcione) é de 6%. É uma péssima contabilidade”, lamentou Low.

Legislação

A prática de testes em animais é permitida de acordo com a lei nº 11.794, editada em 2008 pelo deputado Sérgio Arouca, sendo chamada de Lei Arouca. Ela permite o uso de animais para ensino e pesquisa, desde que respeitadas acomodações, regras sanitárias e que não haja crueldade.

De acordo com a lei, os testes em animais são regulamentados pelo Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (Concea), um órgão do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCTI). O conselho deve estabelecer procedimentos para instalação e funcionamento de centros de criação e laboratórios onde há experimentação animal.

Para que o credenciamento ocorra no Concea, é necessário que a instituição crie sua própria Comissão de Ética no Uso de Animais (CEUA). No caso da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), a única cadeira da CEUA ocupada por uma entidade civil é da Associação Catarinense de Proteção aos Animais (ACAPRA).

E, infelizmente, o que a ONG denuncia é que a aplicação dos protocolos aprovados da CEUA não é fiscalizada.

Além da ausência de monitoramento das atividades, a Advogada Renata Fortes, especialista na proteção judicial dos animais, ressalta que a Lei Arouca é inconstitucional diante do sistema legal de proteção à fauna – ponto reforçado pela liminar concedida pelo Juiz Marcelo Krás Borges, da Comarca de Florianópolis, na Ação Civil Pública 009684-86.2013.404.7200/SC contra a UFSC.

Ela argumenta que a legislação nacional, desde 1934, possui normas legais de proteção aos animais, colocando-os como sujeitos de direito, e que isso foi reforçado a partir da Constituição Federal de 1988, “já que a ordem democrática baseia-se em regras de natureza ética, onde o direito à vida é privilegiado em todas as relações”.

“Eticamente, não é certo usarmos os animais como meio para atingirmos finalidades que somente a nós interessam, vivemos em uma democracia que repudia a exploração de qualquer ser pelo uso da força. Animais, comprovadamente, possuem o mesmo interesse em viver que nós”, nota.

“Além disso, eles não têm a propensão de se revoltar pela condição de confinamento ou tortura. Da mesma forma que respeitamos idosos ou crianças, devemos fazer com os animais” continua a advogada.

Nesta linha, a Declaração Universal dos Direitos dos Animais (ONU, 1978), da qual o Brasil é signatário, coloca que “todos os animais nascem iguais perante a vida e possuem o mesmo direito à existência”.

Fortes explica que apenas lendo a Constituição Federal é possível notar o quanto a Lei Arouca é equivocada.

Por exemplo, o Artigo 225, discorre que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida” e que para assegurar a efetividade desse direito, o Poder Público deve “proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais à crueldade”.

“Nesse artigo, a Constituição Federal prevê o direito fundamental dos animais ao tratamento livre de crueldade, e para nós o poder público tem o dever de garanti-lo,” ressalta Fortes.

A CF também traz em seu artigo 3º como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil “construir uma sociedade livre, justa e solidária” e “promover o bem de todos”.

O Artigo 32 da Lei de Crimes Ambientais (Lei 9605/98) define penas para quem “praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos” – ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos.

Ou seja, quando para determinado experimento houver um método substitutivo, o animal não poderá ser utilizado.

“Mas, mesmo que haja essa previsão de crime pelo uso de animais quando houver um método substitutivo, pela leitura da Constituição Federal não há como interpretar de forma diversa: qualquer teste em animal significa uma prática cruel, mesmo com o uso de anestesia, ou seja, viola-se a norma constitucional. É fácil percebermos isso, basta trocarmos um animal por uma criança, não seria crueldade?”, pondera a advogada.
No âmbito governamental, a questão começou a ganhar foco com a criação da Rede Nacional de Métodos Alternativos (RENAMA) ao uso de animais, através da portaria nº 491 de 03.07.2012 do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI).

O órgão ainda está sendo implementado, porém é importante ficar claro que há o reconhecimento da validade dos métodos alternativos já que o Ministério da Educação (MEC) homologa os diplomas de universidades que os aplicam.

No caso da UFSC – onde a universidade teve que suspender temporariamente o uso de animais –, citando duas decisões de Tribunais superiores sobre a proibição de animais em circo, o juiz Marcelo Krás Borges afirmou que a retaliação de animais para fins cirúrgicos constitui tratamento ainda mais cruel do que a utilização de animais em circos.

Numa das decisões, o ministro Humberto Martins, do Superior Tribunal de Justiça, relator do Recurso Especial 1.115.916, diz na ementa: ‘‘A condenação dos atos cruéis não possui origem na necessidade de equilíbrio ambiental, mas sim no reconhecimento de que são dotados de estrutura orgânica que lhes permite sofrer e sentir dor.’’

Ensino

O uso dos animais no ensino ainda é extremamente disseminado no Brasil, e também altamente criticado.
Há denúncias que mostram o medo dos estudantes em expressar sua rejeição a esses métodos, já que são notoriamente repreendidos por professores e colegas. A “dessensibilização” dos alunos, para afastar qualquer desconforto, começa com o animal sendo rotulado com termos como “peça”, “modelo”, “material de estudo” e com argumentos como que ele estaria ali para isso.

“O uso de animais expõe o estudante muita vezes a contradições, como a de matar para salvar, ou desrespeitar para respeitar. Impõe a muitos estudantes a decisão de cumprir com a tarefa e deixar para trás seus princípios éticos e/ou minimizar suas condições emocionais”, critica Thales Tréz, coordenador da Interniche Brasil e professor da Universidade Federal de Alfenas, Minas Gerais, no livro Alternativas ao uso de animais vivos na educação.

A publicação é de autoria de Sérgio Greif, Biólogo, mestre em Alimentos e Nutrição e um dos principais ativistas pelos direitos animais no Brasil.

“Desconsiderar as diferenças relacionadas à resistência tecidual, coeficiente de sangramento, disposição e tamanhos dos órgãos, reação a anestésicos e outros aspectos fundamentais não pode garantir que estudantes que obtenham sucesso através do treinamento em quadrúpedes o tenham quando o apliquem em seres humanos”, ressalta Trés.

Um exemplo da aplicação de métodos alternativos, no caso do ensino, é o da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (FAMED/UFRGS), que em abril de 2007 tornou-se a primeira faculdade de medicina do Brasil a abolir totalmente o uso de animais na graduação, no que foi seguida logo depois pela Faculdade de Medicina do ABC (SP).

A mudança na UFRGS resultou na implantação de um Laboratório de Técnica Operatória, que funciona apenas com réplicas artificiais das partes do corpo humano, explica o diretor. O projeto todo, com reforma de instalações e aquisição dos modelos, importados, custou cerca de R$ 300 mil, contrapondo o argumento de que seria inviável financeiramente a transição.

“Abolimos o uso de animais porque hoje não se precisa mais disso”, destaca o diretor da FAMED, o médico endocrinologista Mauro Antônio Czepielewski (Leia mais na Ecoagência).

A Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ) da Universidade de São Paulo também não utiliza mais animais vivos, apesar de isso se restringir às disciplinas de técnica cirúrgica e ortopedia.
A professora Júlia M. Matera coloca, no documentário ‘Não Matarás’, que antes da decisão ela utilizaria uma média de 260 a 300 cães ou coelhos por ano e agora a média é de 50 cadáveres.

Nos Estados Unidos, cerca de 90% das faculdades de medicina não usam mais animais, a exemplo das Universidades de Harvard, Princeton e Yale.

A escola de veterinária da Western University of Heath Sciences, nos Estados Unidos, foi criada em 1998 sob o princípio de reverência à vida e com o comprometimento de nunca utilizar animais vivos no ensino.

Pesquisas
No caso das pesquisas, o problema parece ser ainda mais complexo, e a resistência a mudanças, mais arraigada.

Em uma declaração posterior ao caso dos Beagles, a Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da USP lançou uma nota: “Atualmente, não existem alternativas viáveis para a substituição de todos os testes em animais. Em algumas áreas e dependendo da finalidade da pesquisa, há a possibilidade de realizar procedimentos in vitro”.

A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) declarou que, “nas condições atuais, a ciência não pode prescindir do uso de animais em experimentação”. Em 2012 A Fiocruz e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) criaram o Centro Brasileiro de Validação de Métodos Alternativos (BraCVAM), que atuará em conjunto com a Renama.

De acordo com José Mauro Granjeiro, membro do Concea, a Rede prioriza, em sua etapa inicial, a implementação dos métodos validados e recomendados pela Organização para a Cooperação Econômica e Desenvolvimento (OECD, na sigla em inglês).

“A implantação desses métodos permitirá capacitar pessoal para realizá-los e disseminá-los no país, contribuindo para a maior oferta de laboratórios aptos a fazer os testes para as empresas”, informou ao Jornal da Ciência.

Ainda que no Brasil as alternativas não sejam bem disseminadas, universidades do mundo todo estão trabalhando em novos processos.

O Insituto Wyss de Engenharia Inspirada Biologicamente, da Universidade de Harvard, está desenvolvendo tecidos que imitam funções biológicas de órgãos como o coração, pulmão e intestino para melhorar a forma como se testam novos fármacos.

“Há uma necessidade enorme de métodos alternativos para substituir modelos tradicionais usando animais, já que esses testes nem sempre preveem acuradamente como humanos reagirão à nova medicação”, declarou o Instituto.

Ativistas dos direitos animais defendem que, mesmo com algumas deficiências na área de pesquisa, a transição para métodos sem o uso de animais seria gradativa e, contando com maior apoio financeiro, poderia evoluir rapidamente. Com uma regulamentação mais rígida, as empresas também seriam pressionadas a buscar alternativas.

Por exemplo, a União Europeia proibiu no início de 2013 a venda de novos cosméticos testados em animais. A decisão se aplica a todos os novos produtos e seus ingredientes vendidos no bloco de 27 membros, independentemente do local no mundo onde o teste é realizado.

Dentro da Europa, o teste de produtos cosméticos como perfume, pasta de dente e xampu em animais já havia sido proibido desde 2004, porém por pressão das empresas apenas agora a decisão foi ampliada.
Efetividade

Além dos questionamentos éticos, regulatórios e práticos, a real aplicabilidade dos testes em animais também é colocada na berlinda por muitos cientistas e ativistas.

Em um artigo publicado no ‘The Journal of the American Medical Association’, pesquisadores concluíram que tratamentos médicos desenvolvidos em animais raramente se traduziam aos humanos e alertaram que deveria haver cautela ao extrapolar as descobertas provenientes de pesquisas com animais para tratar doenças humanas.

Um caso que ficou conhecido ao redor do mundo foi a administração da Talidomida, introduzida no final dos anos 1950 no Brasil em gestantes – responsável por deformidades em recém-nascidos.

Porém, o escândalo não foi o único desastre verificado em medicamentos que foram exaustivamente testados em animais. A filósofa Sônia Felipe traz em sua obra ‘Ética e Experimentação Animal’ uma lista com mais de 20 substâncias que causaram malefícios aos seres humanos e foram retiradas de circulação.

Felipe informa, ainda, que pelo menos 124 remédios foram retirados do mercado, entre 1968 e 1993, depois de terem recebido certificado público de segurança fornecido pelos laboratórios, ou seja, após terem sido testados em animais.

Fonte: Mercado Ético

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