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quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Duas forças em tensão: a autoafirmação e a integração

Biologicamente nós, humanos, somos seres carentes (Mangelwesen). Não somos dotados de nenhum órgão especializado que nos garanta a sobrevivência ou nos defenda de riscos, como ocorre com os animais. Alguns biólogos chegam a dizer que somos “um animal doente”, um “faux pas”, (um passo em falso), uma “passagem” (Übergang) para outra coisa, por isso nunca fixado, inteiros; mas, incompletos.


Tal verificação nos obriga a continuamente a garantir a nossa vida, mediante o trabalho e a inteligente intervenção na natureza. Deste esforço, nasce a cultura que organiza de forma mais estável as condições infraestruturais e também humano-espirituais para vivermos humanamente em sociedade.

Acresce ainda outro dado, presente também em todos os seres do universo; mas, que no nível humano, ganha especial relevância. Vigoram duas forças: a primeira é autoafirmação, a segunda, a integração. Elas atuam sempre em conjunto num equilíbrio difícil e sempre dinâmico.

Pela força da autoafirmação cada ser se centra em si mesmo e seu instinto é conservar-se, defendendo-se contra todo tipo de ameaça contra sua integridade e a sua vida. Ninguém aceita morrer. Quer viver, evoluir e se expandir. Essa força explica a persistência e a subsistência do indivíduo.

Precisamos neste ponto superar totalmente o darwinismo social segundo o qual somente os mais fortes e adaptáveis triunfam e permanecem. Essa é uma meia verdade que está na contramão do processo evolucionário. Este não privilegia os mais fortes e adaptáveis. Se assim fora, os dinossauros estariam ainda entre nós. O sentido da evolução é permitir que todos os seres, também os mais vulneráveis, expressem virtualidades latentes dentro da evolução. Esse é o valor da interdependência de todos com todos e da solidariedade cósmica. Todos, fracos e fortes, se entreajudam para coexistir e coevoluir.

Pela segunda força, a da integração, o indivíduo se descobre envolto numa rede de relações, sem as quais, sozinho como indivíduo, não viveria nem sobreviveria. Existe o individuo; mas, ele vem de uma família, se insere num grupo de trabalho, mora numa cidade e habita um país com um tipo de organização social. Ele está ligado a toda esta cadeia de relações. Assim todos os seres são interconectados e vivem uns pelos outros, com os outros e para os outros. O indivíduo se integra, pois, por natureza, num todo maior. Mesmo que o indivíduo morra, o todo garante que a espécie continue permitindo que outros representantes venham a nos suceder.

Sabedoria humana é reconhecer o fato de que chega certo momento na vida no qual a pessoa deve se despedir para deixar o lugar, até fisicamente, a outros que virão.

O universo, os reinos, os gêneros e as espécies e também os indivíduos humanos se equilibram entre estas duas forças: a da autoafirmação do indivíduo e a da integração num todo maior. Mas esse processo não é linear e sereno. Ele é tenso e dinâmico. O equilíbrio das forças nunca é um dado, mas um feito a ser alcançado a todo o momento.

É aqui que entra o cuidado responsável. Se não cuidarmos ou pode prevalecer a autoafirmação do indivíduo à custa de uma insuficiente integração e então predomina a violência e a autoimposição ou, ao contrário, pode triunfar a integração a preço do enfraquecimento e até anulação do indivíduo e então ganha a partida o coletivismo e o achatamento das individualidades. O cuidado aqui se traduz na justa medida e na autocontenção para não privilegiar nenhuma destas forças.

Efetivamente, na história social humana, surgiram sistemas que ora privilegiam o eu, o indivíduo, seu desempenho, sua capacidade de competição e a propriedade privada como é o caso da ordem capitalista ou ora prevalece o nós, o coletivo, a cooperação e a propriedade social como é o caso do socialismo real que foi ensaiado na União Soviética e ainda persiste, em parte, na China.

A exacerbação de uma destas forças em detrimento da outra, leva a desequilíbrios, conflitos, guerras e tragédias sociais e ambientais. Com referência ao meio ambiente tanto o capitalismo quanto o socialismo foram depredadores e pioraram as condições de vida da maioria das populações. Em ambos os sistemas o cuidado responsável desapareceu para dar lugar à vontade de poder, ao enfrentamento entre ambos e até a brutalidade nas relações mundiais visando a corrida armamentista e a dominação do curso do mundo.

Qual é o desafio que se dirige ao ser humano? É o cuidado responsável de buscar o equilíbrio construído conscientemente e fazer desta busca um propósito, uma atitude de base e até um projeto político. Portador de consciência e de liberdade, o ser humano possui esta missão que o distingue dos demais seres. Só ele pode ser um ser ético, um ser que cuida de si e que se responsabiliza pela comunidade de vida. Ele pode ser hostil à vida, colocar-se, como indivíduo dominador, sobre as coisas. Mas pode ser também o anjo bom que se sente integrado na comunidade de vida, junto com as coisas. Depende de seu empenho manter o equilíbrio entre a autoafirmação e a integração num todo e não permitir que forças dilaceradoras dirijam a história.

Por ser ético, coloca-se ao lado daqueles que tem dificuldades em se autoafirmar e assim sobreviver e impedir uma integração que destrói as individualidades em nome de um coletivo amorfo. Eis uma síntese sempre a ser construída.

Fonte: Mercado Ético

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