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segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

A vida numa funerária

A vida deles é tratar dos mortos: são eles que os lavam, que os maquilham, que os vestem. Em Dezembro do ano passado, entrou em vigor um decreto-lei que estipula a obrigatoriedade de cada agência funerária ter, pelo menos, um responsável técnico com formação. Agora, eles têm mesmo de ir às aulas, e são todas sobre morte.


Quando se fecha na sala com os mortos, Ricardo Morais imagina-lhes a vida. Em silêncio, observa-lhes as feições, tenta perceber se terão sido felizes, se seriam bem-dispostos, tímidos, ou melancólicos. "A morte traz sempre uma história. Como só se vive uma vez, as histórias nunca se repetem", diz o tanatopractor de 29 anos. Nunca imaginou que iria trabalhar no sector funerário, muito menos em tanatopraxia, técnica que permite dar ao corpo de uma pessoa falecida uma aparência natural, disfarçando a cor e as marcas que se instalam na pele.

Ricardo Morais lembra-se bem do dia em que tudo começou: 3 de Janeiro de 2005. Já tinha trabalhado na construção civil, em armazéns, restaurantes, mas este emprego era diferente - motorista numa das maiores empresas do sector funerário do país, a Servilusa.

No primeiro dia, quando ia a caminho do trabalho, parou cinco vezes no IC19, porque se sentiu maldisposto. "Os nervos eram muitos. Fazia-me impressão ir trabalhar com mortos", recorda. Passou a primeira semana sem olhar para eles. Mas o dia em que teve de enfrentá-los chegou: "O corpo estava gelado, mas não reagi como esperava. Vesti-o, fiz a estética e a partir daí comecei a fazer funerais. Agora, deram-me a oportunidade de fazer o curso de tanatopraxia", conta. Por vezes, custa-lhe. Já teve de se debruçar sobre o corpo de um colega.

Precisamente para preparar os profissionais para enfrentarem o dia-a-dia com a morte é que Ricardo Morais considera "muito importante" a formação que passou a ser obrigatória, com o decreto-lei que entrou em vigor em Dezembro. Agora, cada agência funerária tem de ter, pelo menos, um responsável técnico que é obrigado a frequentar módulos em áreas como psicologia do luto ou procedimentos burocráticos relativos ao óbito.

Cláudia Gonçalves foi outra das trabalhadoras da Servilusa que, ainda antes deste decreto, foi a Barcelona fazer formação em tanatopraxia. Desde pequena que é fascinada pelo corpo humano. Como o pai nunca achou boa ideia que enveredasse pela medicina legal, acabou por se matricular numa licenciatura em dança, mas desistiu. Hoje é tanatopractora. Uma mudança radical? Nem por isso: "É o corpo humano que me fascina."

Ainda que, num palco, quando dança, esteja vivo e, numa mesa de inox, na sala de tanatopraxia, esteja morto, é para o corpo que olha. Ali ele está imóvel, despido e mais frágil. De bata, luvas, máscara e touca, a técnica começa por limpá-lo e desinfectá-lo. Depois, faz um pequeno golpe - no caso, junto ao pescoço, mas pode ser noutro sítio - para encontrar uma artéria. A seguir, outro golpe, também discreto. A máquina já está ligada: assegura, por um lado, a drenagem do sangue; por outro, introduz o líquido conservante. O corpo começa a perder o tom arroxeado e a ganhar outra cor. Ao mesmo tempo, a tanatopractora vai movimentando os dedos hirtos daquela pessoa que quase chegou aos 90.

A seguir, irá limpá-lo novamente e suturar os pequenos cortes. Vestir-lhe o fato e a gravata escolhidos pela família. Finalmente põe-lhe creme na cara e nas mãos. Falta apenas um pouco de base e de perfume. Volta a ajeitar as mãos que teimam em escorregar, entrelaça os dedos uns nos outros, um a um, até que fiquem unidos em cima do peito. É altura de o cobrir com um lençol e abrir a grande arca frigorífica. Só mais tarde será deitado na urna.

Em família

"Não fazemos milagres, mas ajudamos muito as famílias", diz Ricardo Morais. Uma vez, apercebeu-se que para uns pais era mesmo importante fazer o velório, de um rapaz que tinha tido um acidente de mota, de urna aberta. Foi preciso uma reconstrução facial. Com uma foto ao lado, trabalhou das 17h00 às 21h00. Mais tarde, a mãe enviou uma carta à Servilusa "a agradecer" o trabalho. Nestes casos, pode ser necessário pôr uma prótese, fazer enchimentos com espuma, colocar carne artificial, pôr cera, maquilhar. No fim, resta só um receio, conta Ricardo Morais: "Quando pomos a pessoa na urna, penso sempre "Será que a família vai gostar?""

Quem não vê qualquer utilidade no decreto-lei que estipula a formação obrigatória é a família Duarte, que há 22 anos gere a Agência Funerária Nelito, em Vila Nova de Poiares. Aprenderam com a experiência a fazer funerais, a cuidar dos corpos, a tratar de trasladações.

"Já sabemos mais do que os professores. O que é que eles nos vêm ensinar? Como se deve manusear um corpo? Já sabemos...", desabafa Manuel Duarte, de 58 anos que, como já tem um certificado de responsável técnico baseado na experiência, só terá de fazer 175 horas formação - sem esse certificado, seriam 1125 horas (só este leque alargado é que inclui a tanatopraxia). "Isto é uma forma de asfixiar as pequenas agências, porque obriga a ter formação e a pagar por ela. As grandes têm os próprios formadores...", lamenta.

Na Agência Funerária Nelito, não fazem tanatopraxia, embora possam fazer uma reconstrução facial, se for simples: "Desinfecto o corpo, maquilho. E posso fazer uma pequena reconstrução nas mãos e na cara, em casos de acidente, para aliviar a dor dos que ficam, para a família poder beijar, tocar, mas há situações em que o velório tem de ser com o caixão fechado", explica Nelson Duarte, o filho mais novo, de 24 anos, que, antes do decreto, também já tinha feito formação em tanatoestética, soldadura de urnas, acompanhamento psicológico à família e facturação.

O espaço doméstico é dividido com a agência, onde trabalham pai, mãe e dois filhos. De um lado, a casa onde vivem; do outro, o anexo onde recebem os clientes e guardam as urnas e diversos materiais. Não levam os corpos para casa, regra geral tratam deles nos locais onde as pessoas morrem.

Trabalhar num sítio pequeno é diferente de fazê-lo uma cidade grande, diz Manuel Duarte: "Aqui, brilha mais o funeral. Temos mais carinho, mais amizade, é mais personalizado". Conhecem quase sempre as pessoas que morrem. "Trocamos impressões com a família, damos-lhe o ombro, somos os psicólogos", diz o filho.

Estão os três de fato escuro e gravata preta. Orgulham-se de fazer todo um trabalho "invisível", incluindo tratar da burocracia, para que as pessoas possam velar os mortos em paz. Muitas vezes, são tarefas tão subtis que nem se dá por elas. Fazer a barba a um homem, as unhas a uma mulher. Nelson Duarte diz que, ao cuidarem dos mortos, cuidam também dos que ficam: "Descansamos as pessoas, suavizamos a dor." E reagem ao estigma que ainda existe em relação à profissão: "É um serviço que não tem nada de bonito, mas tem de dignidade", defende Manuel Duarte.

Beleza

Belmira Morais, de 59 anos, concorda. Trabalha com o marido na agência funerária Quintino e Morais, em S. João das Lampas, Sintra, desde 1982. Não há muitas mulheres no sector, e não é só em Portugal - também nos Estados Unidos, apesar de serem cada vez mais nas escolas funerárias, continuam a ser poucas no negócio. Belmira Morais olha para o ofício como uma "missão". Preocupa-se com os detalhes, com a beleza de um funeral: "Gosto, entre aspas, que esteja tudo bonito. É fundamental. É um momento tão importante para a família. O ente partiu, mas as coisas estão com dignidade. Vou sempre verificar o lençol, ver os estofos das urnas, vejo o enquadramento, tenho todos esses cuidados, porque no velório a família vai estar uma noite inteira a olhar para uma urna."

Também para o director-geral da Servilusa e presidente da Associação Portuguesa dos Profissionais do Sector Funerário (APPSF), Paulo Carreira, um funeral não é apenas "uma operação logística", mas um "acontecimento social irrepetível".

Muito antes de o decreto ser publicado, a Servilusa já dava formação aos trabalhadores. Os seis tanatopractores que trabalham nesta empresa foram formados em Barcelona, num curso certificado pelo Instituto Francês de Tanatopraxia: são oito meses de aulas de anatomia, de técnicas de conservação transitória, de tanatoestética, de reconstrução, de medicina legal, de saúde pública, de prevenção de riscos laborais, de ética, durante o qual realizam 100 tanatopraxias. Estes técnicos prestam serviço em várias zonas de Portugal, uma vez que a Servilusa, com lojas em todo o país, dispõe de oito salas de tanatopraxia.

A prática, generalizada em países como Inglaterra, Alemanha, França e Estados Unidos, começa, aos poucos, a ser cada vez mais procurada em Portugal, onde já é oferecida também em funerárias mais pequenas.

Paulo Carreira diz que é algo que faz todo o sentido em Portugal, onde "é raro o velório em que a família não queira ver e tocar no rosto [do morto]". Na Servilusa, em 2007, fizeram 341 tanatopraxias, a maioria das quais a cidadãos estrangeiros. Em 2010, chegaram às 2000, 90% das quais a portugueses. A APPSF já criou a Associação Portuguesa de Tanatopraxia e pondera, ainda este ano, dar formação.

Também Vítor Barros, vice-presidente da Associação de Agentes Funerários de Portugal, acredita que a tanatopraxia vai começar a ser "muito utilizada num futuro próximo".

No passado

Apesar de hoje "a sofisticação e a técnica" serem maiores, o padre, teólogo e docente de Filosofia da Universidade de Coimbra recorda que, tradicionalmente, "mesmo nas aldeias, o corpo do morto era lavado, no imaginário popular para apresentar-se limpo na presença de Deus, e havia a tradição de cada um deixar, preparada antecipadamente, a melhor roupa para o seu funeral."

Acrescenta que no Evangelho diz-se que algumas mulheres, como Maria Madalena, foram ao túmulo de Jesus, uma vez que o enterro tinha sido à pressa, para um arranjo conveniente do cadáver, com perfumes: "Tudo isto faz parte do luto e dos afectos."

Mesmo no quadro religioso é "natural" esta "preocupação com o corpo": "Mas uma coisa é tratar dele com naturalidade e exprimindo afectos; outra coisa é a tentativa de "tecnicizar" a morte, procurando eliminá-la", alerta. "E não penso que fosse bom caminhar no sentido das funeral homes, que vi nos Estados Unidos, onde se chega a exageros no tratamento do cadáver, para que pareça vivo. A finalidade seria então precisamente tentar ignorar a morte. Ora, isso não é sadio, pois a morte faz parte da vida", defende. O investigador do Centro de Investigação e Estudos em Sociologia do Instituto Universitário de Lisboa, Abílio Oliveira, também considera que, "em rigor e num sentido mais profundo", estas técnicas, que "dão a ilusão do morto quase-vivo, podem eventualmente confortar um pouco no imediato, mas, ao tentarem ludibriar a morte, não auxiliam no processo de luto".Em lugar de a aceitarmos, mascaramo-la", remata.

Na realidade, a tanatopraxia é mais do que maquilhar um morto: é uma técnica de conservação temporária que impede a saída de qualquer tipo de fluidos, elimina os odores e permite recuperar a cor natural da pele, disfarçando as marcas, por exemplo, de uma doença prolongada ou de um acidente vascular cerebral. E pode implicar pequenas reconstruções da cara e das mãos: "É impressionante o que se pode fazer", garante Paulo Carreira.

Recuando na história, verificamos que a técnica foi muito utilizada na Guerra Civil americana, quando os soldados falecidos eram embalsamados em acampamentos improvisados, para serem entregues aos familiares. Mas os "pioneiros no embalsamamento" foram os egípcios, diz a docente de História da Medicina da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, Madalena Esperança Pina: "No Antigo Egipto, o culto da morte era muito forte."

Mas tanatopraxia e embalsamamento não são exactamente o mesmo. O presidente do Instituto Nacional de Medicina Legal, Duarte Nuno Vieira, explica que a tanatopraxia tem como objectivo melhorar o aspecto de um cadáver para as cerimónias fúnebres, enquanto o embalsamamento, que até agora em Portugal é praticado apenas por médicos ou sob a tutela destes, não persegue o embelezamento e serve sobretudo para preservar o corpo por períodos mais prolongados, sendo usado com frequência em processos de trasladação e quando estão em causa perícias médico-legais.

E quantos tanatopractores haverá em Portugal? O presidente da Associação Nacional das Empresas Lutuosas (ANEL), Nuno Monteiro, diz que é difícil avançar com um número, porque há falta de regulamentação na área. Apesar de o decreto-lei já clarificar que os agentes funerários podem fazer tanatopraxias, falta publicar uma portaria que especificará, entre outras, em que condições devem fazê-lo. Quanto a agentes funerários, e segundo dados da ANEL - que tem escola funerária desde 2009 e dá formação desde 2006 -, há 1300 registados.

Um serviço de tanatopraxia pode, porém, não estar ao alcance de toda a gente. Nuno Monteiro diz que, dependendo dos casos, uma intervenção pode oscilar entre os 400 e os 800 euros.

Rotina

Morte, morte, morte. Será que é possível alguém, por força da rotina, habituar-se à palavra, à ideia? "Com o tempo, [o agente funerário] pode ir-se habituando à ideia da morte dos outros. Mas da minha morte não", diz o psicólogo da Servilusa, Victor Sebastião, carregando no pronome "minha". "É a morte alheia, não é a nossa", acrescenta, explicando que na "nossa" morte também cabe a de quem nos é próximo.

O que é a morte, o luto, e as diferentes reacções à perda são alguns dos conceitos que a psicóloga Joana Marafuz aborda no módulo de psicologia do luto, no âmbito da formação organizada pela ANEL. À sua frente, na sala, tem 17 agentes funerários. É a sétima acção que dá, já está preparada: "Alguns [agentes] têm o foco na questão comercial e nunca é de mais falar sobre o sofrimento das famílias. Outros não sabem lidar com a situação, não sabem gerir o stress e envolvem-se demasiado."

E depois há o preconceito: "A nível social, ainda há atitudes discriminatórias. [As pessoas] acham que estes profissionais são poucos escolarizados, pouco sensíveis, sem emoções e que estão sempre à espera de qualquer momento para o negócio." Apesar de haver alguns mais próximos deste perfil, em muitos outros casos "é nitidamente o oposto", garante a psicóloga.

Abílio Oliveira considera que, até hoje, "os agentes não se têm mostrado muito preparados para lidar com pessoas que estão a passar por momentos muito difíceis, em particular a nível psicológico, com repercussões na vida pessoal, familiar e social". Embora reconhecendo que têm "naturalmente objectivos comerciais", o investigador entende que a formação que estão a receber é importante para apoiarem quem os procura: "Sem que se lhes peça que sejam psicólogos, podem contribuir para o encarar e enfrentar da situação."

Ao longo da aula, os formandos vão contando histórias mirabolantes: reconhecimentos errados de corpos, velórios trocados, fraudes, erros burocráticos, lutas entre familiares no cemitério, mortos que afinal estavam vivos... A maior parte são tragicomédias, mas também há quem partilhe momentos de fraqueza: "Uma vez, vi crianças agarrarem-se à mãe, na urna", conta António Matias de 52 anos. Escondeu-se para chorar: "Já tenho 30 anos disto, mas também caio."

Belmira Morais também admite ter "a sensibilidade à flor da pele". Na formação, mostra-se incomodada com o humor negro de alguns colegas e responde sem pestanejar a um agente funerário que diz ficar feliz é quando o telefone toca e só chorar quando não lhe pagam: "Fale por si", diz-lhe secamente.

Joana Marafuz acha que uma das maiores dificuldades destas pessoas é mesmo, ao contrário do que possa parecer, falar sobre a morte: "Apesar de lidarem todos os dias com ela, não é falada de forma muito séria, mas mais pela brincadeira, talvez para descomprimir." Contar a um amigo como correu o dia de trabalho ou falar destes assuntos ao jantar, ao lado dos filhos, é um problema para alguns.

Anselmo Borges não tem dúvidas de que "nas nossas sociedades urbanas, tecnocientíficas, a morte é tabu": "Não é de bom tom falar disso. Claro que há congressos, colóquios e muitos estudos sobre a morte, mas aí é a morte neutra, na terceira pessoa, "académica", não a única morte que há: a minha, a dos meus amigos e familiares."

Porquê? "Vivemos numa sociedade da chamada racionalidade instrumental, da eficácia, uma sociedade poderosíssima nos meios, mas sem finalidades humanas. Assim, uma vez que a morte escapa à capacidade de domínio, a solução é ignorá-la. Ela põe em questão uma sociedade que investe no poder, no espectáculo, na juventude, na beleza, no ter."

Hoje, continua Anselmo Borges, "do tabu da morte também faz parte o esquecimento dos mortos, e essa é uma das razões da nossa crise". Porque eles, os mortos, "representam o passado, a memória" e, sem isto, "perdemos a identidade, individual e colectivamente".

Já diz Ricardo Morais: "A morte traz sempre uma história."

Fonte: Público.pt

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