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quinta-feira, 7 de novembro de 2013
Código Mineral: de costas para a sociedade
Que muda com a nova lei de mineração, que Congresso analisará, em 2014. Por que movimentos sociais precisam exigir debate público.
O projeto do novo marco regulatório da atividade mineradora, o PL 5.807/2013, tem provocado críticas de vários setores da sociedade civil. Em especial por seu caráter antidemocrático (elaborado em gabinete fechado) e por fazer tabula rasa dos enormes impactos socioambientais causados pelas empresas. Aplainado pela frente parlamentar da mineração – a exemplo do Código Florestal de 2012, desfigurado pela bancada ruralista –, tem mais de trezentos e setenta emendas e deve ser apresentado à Câmara Federal nesta quarta-feira, 6 de novembro, pelo relator Leandro Quintão (PMDB-MG). Por suas falhas, pelas polêmicas que provoca e pela falta de discussão, sua votação deve ficar para o ano que vem.
O PL desagrada às gigantes do setor, que veem nele a porta de entrada à maior participação do Estado no negócio. E também às pequenas empresas de geologia e pesquisa mineral, que identificam no projeto reserva de mercado às gigantes, com sua provável expulsão do jogo. Já advogados apontam insegurança jurídica, pois o novo marco deixa o detalhamento de algumas matérias para decreto presidencial e regulamentação da agência fiscalizadora do setor, a ser criada.
A seu favor pode-se apontar a inovação no regime de concessões, o fato de que o Estado passa a ter participação no produto da lavra e que as concessões deixam de ser ad eternum.
“DNA” do Código
O PL prevê como regimes de concessão: a licitação, a chamada pública e a autorização. O primeiro caso será aplicado a áreas consideradas estratégicas e de grande valor econômico, segundo definição do Conselho Nacional de Política Mineral (CNPM) – outro órgão a ser criado. Fora isso, a concessão será precedida de chamada pública, por iniciativa da agência reguladora ou de interessado. A autorização, regime de concessão mais simples e rápido (que revoga o Regime de Licenciamento criado pela lei 6.567/1978), será aplicada para minérios de uso na construção civil: argila para tijolos, telhas e afins, rochas ornamentais, água mineral e minérios utilizados como corretivos de solo na agricultura.
Nas licitações, o código inova nos critérios de julgamento para a concessão. A exemplo do leilão de Libra, a empresa deverá oferecer um bônus de assinatura; e também um bônus de descoberta, depois de apurado o potencial econômico do bloco. Outro critério será o programa exploratório mínimo, um conjunto de atividades a ser realizadas obrigatoriamente pelo concessionário na fase de pesquisa.
Um dos critérios decisivos, que poderá ser considerado de maneira isolada ou combinada com um ou vários dos demais, é a participação no resultado da lavra. Hoje, a empresa concessionária tem direito a 100% da propriedade do produto da lavra. Aqui há uma mudança substancial em favor do Estado, que terá assegurada uma participação mínima no produto, sem prejuízo da carga tributária e de taxas. Aqui, seria desejável que os percentuais de participação do Estado já fossem definidos pelo código ou sua regulamentação, já que os governos mudam, a orientação das licitações sofrem ingerências políticas e não é de se duvidar, com base no histórico das concessões, a ocorrência de arreglo prévio entre empresas.
O prazo dos contratos não será mais ad eternum ou até o esgotamento da mina, mas terá vigência de quarenta anos, prorrogável por períodos sucessivos de até vinte anos, desde que as obrigações legais e contratuais sejam atendidas pelo concessionário. No ato da prorrogação, a critério do poder público, poderão ser incluídos nos contratos de concessão novas condições e obrigações. Vale ressaltar aqui que os novos contratos terão uma cláusula específica para os critérios de devolução das áreas e fechamento das minas, em que estará incluída a obrigação de recuperação ambiental das áreas afetadas pela atividade, “conforme solução técnica exigida pelo órgão ambiental licenciador”.
Sanções
As hipóteses de incidência de sanções serão reguladas pela nova Agência Nacional de Mineração (ANM). O código elenca quatro sanções administrativas (multa, suspensão temporária de atividade, apreensão de minério, bens e equipamentos, e caducidade), mas a agência estipulará as hipóteses e os critérios de sua aplicação. Mais uma fragilidade do código, pois a própria lei deveria trazer as hipóteses, critérios e graduação das penalidades, em especial nos casos de infrações socioambientais – evitando assim ingerências políticas nos regulamentos.
O caso da hidrelétrica de Belo Monte é um exemplo. Por não executar as condicionantes socioambientais exigidas pelo Ibama antes da Licença Prévia, fato denunciado pelo Ministério Público Federal, o consórcio teve suas atividades suspensas por decisão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em outubro de 2013. Mas o presidente do Tribunal, apoiado em lei editada em 1964 e reeditada em 1992, que suspende liminares contra o poder público se essas representarem “grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas”, suspendeu a liminar. E assim a Belo Monte pôde retomar suas atividades que, entre outros efeitos, causam graves lesões à ordem, à saúde, à segurança e à economia pública dos povos indígenas e ribeirinhos da região.
Assim como para Belo Monte, a lei das liminares também beneficiaria as mineradoras ao longo de toda atividade. Portanto, além da fixação dos critérios na própria lei, o Congresso deveria se empenhar para revogar a lei de 1964, criada para garantir, sem maiores considerações socioambientais, a continuidade de obras faraônicas como Transamazônica e Itaipu – num tempo em que a discussão do governo com a sociedade organizada e com as comunidades atingidas era praticamente nulo.
“Monopolização” da pesquisa
Ao contrário do código atual, o projeto reúne num único título a pesquisa e a lavra. Hoje é possível uma pessoa ou escritório de geologia fazer a pesquisa e, comprovado o valor econômico da área, negociar a concessão com uma mineradora. Ao vincular pesquisa e lavra num único título, concedido agora apenas a empresas capazes e habilitadas à lavra, diz o governo pretender, além de estimular a concorrência no setor, eliminar a “especulação” permitida pelo modelo atual.
Os bônus de assinatura e de descoberta, e o programa exploratório mínimo (que exigirá investimentos das empresas) são fortes instrumentos dessa nova política, pois, já eliminada a possibilidade de pesquisa por pessoas físicas, impossibilitariam a participação de pequenas empresas como outorgadas. Isso só não atinge a lavra garimpeira, regulada por lei específica. O projeto mantém a exigência de taxa anual por ocupação e retenção da área, de modo progressivo em função do porte da mineradora.
A consequência desse novo regime de pesquisa é nociva às pequenas empresas do setor, pois retira a figura da prioridade presente no código atual. Hoje, uma pessoa ou pequena empresa pode pesquisar e descobrir uma área com grande potencial econômico e obter a prioridade. Pelo novo código, porém, se a área estiver fora daquelas consideradas estratégicas pelo governo (para futuras licitações), deverá informar suas características e localização exata, e não terá direito à prioridade pela descoberta. Ao contrário, haverá uma chamada pública, e se a área for mesmo de grande potencial econômico atrairá o interesse das grandes empresas, que fatalmente a abocanharão.
As pesquisas ficam assim prejudicadas, e muitas das pequenas empresas do setor estarão sendo jogadas para fora do mercado em favor das grandes. Isso abre a possibilidade de uma concentração, com as grandes empresas absorvendo as estruturas e mão de obra das pequenas. Vale lembrar que, nesse trabalho pesado e inóspito de pesquisa, as chamadas junior companies são reconhecidas por descobrir a maior parte de depósitos minerais com potencial econômico. Em dez anos, foram localizadas por elas mais de 2,8 milhões de toneladas de níquel, mais de 800 mil toneladas de cobre, mais de 650 milhões de toneladas de ferro e mais de mil toneladas de ouro, cujo valor total in situ soma mais de 164 bilhões de dólares – conforme Nota de Repúdio e Resposta ao Ministro Edison Lobão, assinada por entidades do setor.
Não se deve perder de vista, porém, que pelos tipos de concorrência o modelo proposto valoriza mais os depósitos minerais, os quais são, em última instância, riqueza da União. Talvez aqui a saída fosse criar um bônus de descoberta que revertesse, inteira ou parcialmente, ao descobridor do depósito. Acontece que a figura do bônus está presente apenas no modelo de licitação. Tal solução estimularia a pesquisa em áreas não cobertas pela Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM), que passará a ter papel central no assunto.
A CPRM, vinculada ao Ministério de Minas e Energia, será encarregada de desenvolver estudos e pesquisas científicas e tecnológicas para o aproveitamento dos recursos minerais. O governo federal destaca o papel da CPRM como fundamental para a realização da pesquisa de minérios, bem como para a implantação e gestão de informações sobre geologia, recursos minerais continentais e marinhos, entre outros. Suas informações geológicas sobre o potencial exploratório do território ajudarão a orientar as licitações quanto à escolha dos blocos a serem disponibilizados para atividades de pesquisa e lavra.
Em outras palavras: o governo promete investir em pesquisa para aumentar as possibilidades de exploração da geodiversidade do país, e dessa forma aumentar a participação do setor no PIB nacional, hoje em torno de 4%.
Nova política de mineração
O PL cria o Conselho Nacional de Política Mineral (CNPM), órgão vinculado à presidência da República e presidido pelo ministro de Minas e Energias – responsável por propor diretrizes para o planejamento da política mineral. E também a Agência Nacional de Mineração (ANM), autarquia vinculada ao Ministério, com autonomia financeira e administrativa. A ela caberá regular, fiscalizar e promover a gestão de informações do setor. Será responsável pela implementação da política nacional para a atividade minerária, em apoio técnico ao CNPM.
A ANM será sucessora do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) , criado em 1934. Uma das razões para a substituição do órgão atual é a precariedade da fiscalização e o acúmulo de sanções administrativas aguardando solução. A “espera” pode chegar a vinte anos. Na verdade, o que as empresas aguardam é que sejam abonadas suas multas e penalidades. A lógica, aqui, é a mesma aplicada aos infratores ambientais com a aprovação, em 2012, do novo Código Florestal: anistia das dívidas por desmatamento ilegal, gerando o conhecido clima de impunidade. Assim como neste pesou a atuação da bancada ruralista no Congresso, agora é a vez da frente parlamentar da mineração, financiada em suas campanhas eleitorais por empresas do setor como Vale, Usiminas etc.
Mais recursos para a União
Outra mudança, curiosamente reclamada sem ênfase pelas empresas, é o aumento da Compensação Financeira pela Exploração Mineral (CFEM). Atualmente de 0,2% a 3%, chegará até a 4%, a partir do teor do minério e de suas respectivas cadeias produtivas. O minério de ferro, por exemplo, passará de 2% para 3%. As alíquotas de cada mineral serão definidas por decreto da presidência. Com a mudança, o governo espera elevar a arrecadação atual, de 1,8 bilhão de reais, para 3 bilhões de reais.
Outra mudança significativa, que deverá impactar o montante da Compensação, é a da base de cálculo da CFEM. Esta deixará de ser a receita líquida das empresas para ser a receita bruta de vendas, deduzidos os tributos efetivamente pagos (ICMS, PIS, Cofins). Já a distribuição da CFEM permanecerá a mesma: 12% para a União, 23% para os Estados e 65% para os municípios, no caso de a produção ocorrer em seus territórios. Esse pacote de bondades para os municípios é fruto do reconhecimento dos violentos impactos socioambientais causados pela atividade mineradora. Em princípio, as receitas deverão ser aplicadas em projetos que beneficiem as comunidades locais atingidas pelos empreendimentos, fiscalizadas pelos órgãos federais, comunidades atingidas e eleitores em geral.
Neodesenvolvimentismo e velhos danos socioambientais
Tudo indica que, com esse marco regulatório, o governo quer provocar um novo surto desenvolvimentista no setor, sem considerar questões socioambientais. A elas são feitas apenas referências de ordem genérica, que na “hora H” poderão sofrer o enquadramento coercitivo do Estado, na tradição do relevante interesse público da União, ou, nos termos do novo código: “o aproveitamento dos recursos minerais é atividade de utilidade pública e de interesse nacional”. Mas não reserva nenhum artigo aos povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos, que fatalmente continuarão sendo atingidos. Nenhum dispositivo concreto sobre impacto ambiental, nenhuma palavra sobre biodiversidade. É a velha política, nociva e leniente, no novo código.
Na prática, a CFEM é uma transferência de responsabilidades. Mas contratos atuais, tal qual o da Belo Monte, já trazem como condicionante ambiental o investimento em postos de saúde, escolas, vias públicas etc. Uma ação ajuizada contra o não-cumprimento de condicionantes socioambientas para obter as licenças, situação comum na exploração de recursos minerais e hídricos, leva em geral anos para chegar a um termo, e, quando isso ocorre, não há como voltar ao estado anterior, pois o fato está consumado. Restará pleitear uma indenização financeira, cujo valor será consideravelmente reduzido por ingerências políticas, quando não anulado pelo perdão do Estado. É o último confisco do grande capital praticado contra as riquezas brasileiras, aqui incluídos os povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos e todo o sacrifício de fauna e flora realizado em nome do lucro da iniciativa privada.
Embora o projeto de lei faça oito referências genéricas à cultura ambientalista, em expressões como forma sustentável, recuperação ambiental e recuperação dos danos ambientais causados pela atividade de mineração, ele, juntamente com o Código Florestal de 2012, representa na verdade uma guinada conservadora na política ambiental brasileira, em favor de um surrado modelo exportador de commodities.
Apesar da grande importância do setor na economia do país, isso não exime o poder público de sua responsabilidade de consignar os instrumentos jurídicos, políticos, materiais e humanos para, na implantação de sua nova política mineral, assegurar de maneira eficaz os direitos dos povos e da natureza.
Ligações Perigosas
Na elaboração do projeto do novo código, é possível constatar as distorções políticas do nosso modelo de representação parlamentar, como fica evidente na pesquisa de Clarissa Reis Oliveira, “Quem é quem nas discussões do novo código da mineração”, produzida pelo Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase).
O deputado federal do PT mineiro Gabriel Guimarães, por exemplo, – titular na Comissão de Minas e Energia, na Subcomissão Permanente sobre o Marco Regulatório de Mineração do Brasil e presidente da Comissão Especial que analisa a proposta do novo código – foi eleito em 2010 com financiamento da Gerdau Comercial de Aços S/A, Cia. Brasileira de Metalurgia e Mineração e Rima Industrial S/A, entre outras, numa campanha nada modesta de 3 milhões de reais. Também o relator do projeto, deputado federal Leonardo Quintão (PMDB-MG), foi financiado, no mesmo ano, por empresas como Usiminas, Gerdau e Acelor Mittal, com quase 20% da receita declarada de 2 milhões de reais provenientes do setor de mineração.
Esse é o grau de promiscuidade existente entre as empresas privadas e aqueles que deveriam representar a população. (Conforta lembrar campanhas modestas, de cem a duzentos mil reais, financiadas em grande parte por doadores individuais, além do próprio candidato).
Mais um dado, no mínimo perturbador. Um dos signatários do projeto enviado ao Congresso é o ministro de Minas e Energia, Edison Lobão, cujo filho é proprietário da mineradora Vale do Sol. O que dizer dele e da frente parlamentar da mineração, e outras frentes, que não apenas advogam, mas também legislam em causa própria? (Mais “ligações perigosas” na matéria da Agência Pública.)
A subordinação dos políticos às corporações parece evidente nos anos de contato entre equipes do governo e representantes das empresas do setor, em que diversas sugestões e reparos foram propostos por estes e acatados por aqueles. As discussões foram feitas nos gabinetes, e em nenhuma etapa entidades civis foram convidadas a participar. O lacre final do projeto foi votação em regime de urgência.
Os vínculos entre a política institucionalizada e as corporações que detêm o poder de fato alijam as organizações civis do debate e reforçam os métodos antidemocráticos de parte considerável da sociedade brasileira. É o que chamamos de o poder na sombra.
* Marcelo Degrazia é escritor. Autor de A Noite dos Jaquetas-Pretas e do blog Concerto de Letras.
Fonrte: Envolverde
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